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Trabalhos de Estudantes Trabalhos de Filosofia - 11º Ano |
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René Descartes Autores: Andreia Pinto e Maria Goreti Mota Escola: Escola EB 2.3/S de Baião Data de Publicação: 20/04/2009 Resumo do Trabalho: Trabalho sobre o filósofo René Descartes, realizado no âmbito da disciplina de Filosofia (11º ano). Ver Trabalho Completo Comentar este trabalho / Ler outros comentários Se tens trabalhos com boas classificações, envia-nos, de preferência em word para notapositiva@sapo.pt pois só assim o nosso site poderá crescer.
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Introdução: No âmbito da disciplina de Filosofia, foi-me proposta a realização deste trabalho de carácter obrigatório, que consiste na apresentação da teoria do conhecimento do filósofo francês, René Descartes. Este trabalho, está subdividido em cinco partes, em que inicialmente é apresentada uma integra biografia do filósofo em questão, bem como o século/época em que Descartes viveu. Nas partes seguintes, é apresentado todo o pensamento cartesiano bem como as razões que levam Descartes a pensar de tal modo, nunca deixando esquecer a época em que se encontra inserido, que consta ser das mais instáveis de sempre. Com este trabalho, pretende-se compreender o problema da possibilidade do conhecimento, bem como compreender e discutir a solução cartesiana para o problema da possibilidade do conhecimento, abordando conceitos como: crença básica, crença não básica, dúvida metódica, cogito, génio maligno, ideias claras e distintas, racionalismo, entre outros. Biografia: René Descartes nasceu a 31 de Março de1596, numa aldeia que, antes dele, se chamava Touraine e, depois dele, passou a chamar-se La Hayer-Descartes, no departamento francês de Indre-et-Loire. Filho de Joachim de Brochard, nobre, conselheiro do Parlamento de Bretanha, e de Jeanne de Brochard, oriunda de uma família de militares, foi baptizado a 3 de Abril. Seu avô paterno tinha exercido medicina e a sua família era originário da região de Châtellerault, onde possuía alguns pequenos domínios. Foi o terceiro filho da família, que teve depois um outro, morto pouco depois do nascimento. A sua mãe morre a seguir a este último parto. O pai volta a casar-se e tem quatro filhos deste novo casamento. Descartes passou a sua infância no campo tendo sido educado pela avó paterna e por um tutor. Em 1604, com apenas oito anos, entra para o colégio Royal Henry-Le-Grand que os jesuítas tinham aberto em La Flèche, destinado à educação da juventude nobre. O curso de La Flèche durava um triénio, tendo Descartes sido aluno do Padre Estêvão de Noel, que lia Pedro da Fonseca nas aulas de Lógica, a par de Commentarii. Descartes reconheceu que lá havia certa liberdade, no entanto, no seu Discurso sobre o método declara a sua decepção não com o ensino da escola em si mas como baseado na cultura e tradição que era fundamentalmente escolástico cujo conhecimento científico achava confuso, obscuro e nada prático. Descartes esteve em La Flèche cerca de nove anos (1606.1615), sendo considerado bom aluno e onde aprende latim, matemática. Lógica, física, etc. Neste colégio foi dispensado dos exercícios da manhã, uma vez que, era considerado uma criança de saúde frágil. Isto podia não ter qualquer importância; mas a verdade é que Descartes adquiriu, já em criança, um hábito que o acompanharia pela vida fora: o hábito de meditar na cama. Em 1612 deixa o colégio jesuíta ingressando, depois, na Faculdade de Direito de Poitiers, onde obtêm a licenciatura em direito civil e canónico (1616). No entanto, Descartes nunca exerce Direito, quando em 1616 vai para Paris, frequentar círculos boémicos, reencontra o antigo colega Martin Mersenne e contacta com o matemático Mydorge. É de referir que nessa altura, guerras religiosas dividiam a Europa; curiosamente, Descartes também se deixou dividir por elas: primeiro lutou ao lado dos protestantes depois ao lado dos católicos. Em 1618, ingressou, no exército protestante do Príncipe Maurício de Nassau que estava em luta com Espanha, tendo a intenção de seguir carreira militar. Mas se achava menos um actor do que um espectador: antes ouvinte numa escola de guerra do que verdadeiro militar. Na cidade de Breda conhece Isco Beeckman, médico, com o qual estabelece um frutuoso contacto científico, sendo Descartes bastante influenciado por Isaac Parece ser desta época o seu projecto de compor um trabalho geral em que o conjunto das ciências do úmero seja claramente exposto. Em 1619 parte para Alemanha, viaja até à Dinamarca, Polónia, etc., e ingressa no exército de Maximiliano da Baviera, passando os inversos de 1619 e 1820 talvez perto da cidade de Ulm. Trabalha no seu projecto sobre matemática e têm duas «iluminações» ou «sonhos», nos quais vê o sinal da sua vocação filosófica. Tendo ficado bastante impressionado, faz o voto de ir em peregrinação a Loreto, na Itália, para agradecer à santa virgem. Em 1620 terá provavelmente contactado com o matemático e alquimista Faulhaber que o terá informado sobre as Rosa-Crux. Regressa à Holanda onde contacta, em 1621 1622, com a princesa Elisabete, com a qual passará a manter correspondência. Em 1622 viaja para Poitou, a fim de regular os assuntos relativos `sua herança; vende os seus bens, ficando com o suficiente para viver sem ter de trabalhar. Seguidamente, viaja pela Suiça e Itália, deslocando-se a Loreto para dar cumprimento à sua promessa. Deixa a Itália em 1625 e instala-se em Paris onde permanece até 1628. Ocupa-se então com investigações sobre matemática e dióptrica. Assiste a uma conferência em casa de Núncio Apostólico em Paris, e nela argumenta de modo brilhante. Nessa ocasião o cardeal Bérulle, fundador do Oratório, incita-o a prosseguir as suas investigações filosóficas. Em 1628 parte para a Holanda, aí residindo até 1649. Em 1629 anuncia, em carta a Mersenne, que está a escrever um Tratado do Mundo, terminado em 1633. Estava para o publicar quando recebeu a notícia da condenação de Galileu, e talvez por isso toma a decisão de não o publicar. Escreve ensaios sobre Dióptrica, Meteoros e Geometria, publicados em 1637 e antecedidos em prefácio que é o Discurso do Método. Nesse mesmo ano morre prematuramente a sua filha Francine, filha de uma serviçal, o que o marca profundamente no plano afectivo. Em 1641 são publicadas as Meditationes de Prima Philosophia, dedicadas aos doutores da Faculdade de Teologia de Paris. Viaja por três vezes a França, uma delas, ao que consta, para obter uma pensão real que lhe tinha sido prometida e nunca paga. Tornado célebre desde a publicação de Discurso do Método, Descartes vai ser duramente atacado, em França pelos Jesuítas, desde 1637 e, na Holanda pelo teólogo Gisbert Voet e por Vorstius. A Universidade de Leyde chega a acusar Descartes de blasfemo. Enquanto reside na Holanda, muda com frequência de residência, mas em 1648 chega a Paris em plena Fronda. A sua estadia aqui é breve, a agitação não é um ambiente propício ao trabalho, Paris não lhe convém. A rainha Cristina da Suécia convidou-o par filósofo da corte em Estocolmo. Descartes, depois de várias hesitações, acaba por partir em 1649. Descartes aceitado o convite da rainha Cristina é forçado a levantar-se às cinco da manhã para ensinar Filosofia à rainha, e com um emprego que consistia em escrever um bailado, tudo lhe era estranho. Demasiado frágil para a dureza do Inverno sueco, contraiu pneumonia quando tratava de um amigo doente, o que provocou a sua morte a 11 de Fevereiro de 1650. Como um católico num país protestante, ele foi enterrado num cemitério de crianças não baptizadas, em Adolf Fredrikskyrkan em Estocolmo. Depois, seus restos foram levados para França e enterrados na Igreja de São Genevieve-du-Mont em Paris. Durante a Revolução Francesa seus restos foram desenterrados a fim de serem deslocados para o Panthéon ao lado de outras grandes figuras da França. Em 1667, depois da sua morte, a Igreja Católica Romana colocou suas obras no Índex Librorum Prohibitorum (Índice dos Livros Proibidos). Respeitado e admirado pelos seus e amigos, Descartes parece ter sido um homem gentil, discreto, talentoso, versátil, bom amigo, com uma personalidade bastante forte e segura de si. A sua álgebra e geometria fazem parte do património da Matemática. Como filósofo, destaca-se entre os maiores de todos os tempos. Católico fiel, nunca pôs em dúvida a doutrina na qual foi «instruído desde a infância», bem como a obediência «às leis e costumes do meu país». Ainda hoje as suas ideias filosóficas são discutidas e com a sua reflexão terá pretendido que a «razão contribua efectivamente para tornar o Estado mais próspero e a Igreja mais respeitada». Quanto à sua vida, pela amostra, não se pode dizer que não tenha sido bastante preenchida. Descartes e a sua época: «Certos homens são grandes porque representam tudo o que a sua época contém de forças latentes; e a sua magia consiste em reflectir o futuro. Eles exprimem os pensamentos que serão os de toda a gente dois ou três séculos depois. Tal foi René Descartes» Thomas Huxley Descartes está inserido numa época das mais revoltas, instáveis e, talvez por isso mesmo, fecundas da história europeia, e foi contemporâneo de acontecimentos decisivos para a evolução da vida e da civilização humanas, como podemos concluir através da análise do seguinte quadro sinóptico:
O século de Descartes: O século XVI foi uma época de importância capital na história da humanidade, uma época de um enriquecimento prodigioso do pensamento e de uma transformação profunda da atitude espiritual do homem; uma época possuída por uma verdadeira paixão de descoberta; descoberta no espaço e descoberta no tempo; paixão pelo novo e paixão pelo antigo. Os seus eruditos desenterraram todos os textos enterrados nas velhas bibliotecas monásticas. Leram tudo, estudaram tudo, editaram tudo. Fizeram reviver todas as doutrinas esquecidas dos velhos filósofos da Grécia e do Oriente: Platão e Plotino, o estoicismo e o epicurismo, o cepticismo e o pitagorismo, o hermetismo e a cabala. Os seus sábios tentaram fundar uma ciência nova, uma física nova e uma nova astronomia; os seus viajantes e aventureiros sulcaram aros continentes e os mares, e os relatos das suas viagens levaram à concepção de uma geografia nova, de uma nova etnografia. Alargamento sem igual da imagem histórica, geográfica, científica do homem e do mundo. (…) Fervilhamento confuso e fecundo de ideias novas e de ideias renovadas. Renascimento de um mundo esquecido e nascimento de um mundo novo. Mas também: crítica, abalo, e enfim dissolução e mesmo destruição e morte progressiva das antigas crenças, das antigas concepções, das antigas verdades tradicionais que davam ao homem a certeza de saber e a segurança da acção. De resto, uma coisa supõe a outra. O pensamento humano é, na maior parte dos casos, polémico. E as verdades novas estabelecem-se, quase sempre, sobre o túmulo das antigas. Seja qual for, de resto, a validade desta tese geral ela é verdadeira para o século XVI. Que tudo abalou, tudo destruiu: a unidade politica, religiosa, espiritual da Europa; a certeza da ciência e a fé; a autoridade da Bíblia e a de Aristóteles; o prestígio da Igreja e o do Estado. Um amontoado de riqueza e um amontoado de escombros: tal é o resultado desta actividade fecunda e confusa, que tudo demoliu e nada soube construir, ou, pelo menos, acabar. Por isso, privado das suas normas tradicionais de juízo e de escolha, o homem sente-se perdido num mundo que se tornou incerto. Mundo onde nada é seguro. E onde tudo é possível. Ora, pouco a pouco, a dúvida instala-se. Porque se tudo é possível, é que nada é verdadeiro. E se nada é seguro, só o erro certo. (…) Os adversários de Descartes são, sem dúvida, Aristóteles e a escolástica. Mas não são, todavia, os seus únicos adversários, tal como demasiadas vezes foi dito, tal como outrora eu próprio o disse (a estes trata-se de os substituir e não de os combater): o adversário é também, e talvez sobretudo, Montaigne. Ora, Montaigne é, ao mesmo tempo, o verdadeiro mestre de Descartes. A obra destruidora e libertadora de Montaigne – a luta contra as «superstições», os «preconceitos», mas «opiniões feitas», a falsa racionalidade escolástica – Descartes prolonga-a e leva-a até ao fim. A dúvida transformada em método, apoiada na certeza da verdade reconquistada, torna-se nas suas mãos uma pedra de toque, um poderoso instrumento de crítica, um meio de discernimento do verdadeiro e do falso. A inversão socrática, a viragem para si mesmo – Descartes segue Montaigne, ultrapassa-o e leva a análise até ao fim. A atitude céptica de Montaigne – Descartes combate-a, levando – a, também a ela, até ao fim. É nisso, nesse radicalismo inflexível e fixo do seu pensamento – virtude muito rara e que exige muito mais que simples qualidades intelectuais, coragem, que supõe a determinação de não se deixar ficar pelo caminho, antes preservar nele custe o que custar, não obstante os obstáculos, não obstante os absurdos aparentes – é nisso que consiste a grandeza de Descartes. E porque foi em tudo até ao fim, pôde salvar-se do labirinto do erro e da dúvida, e onde Montaigne não tinha sabido encontrar nada, nada além do vazio e de finitude, ele soube, ele, Descartes, descobrir a clareza de liberdade espiritual, reencontrar a certeza da verdade intelectual e encontra Deus. É essa a verdadeira tarefa do Discurso: reencontrar-se a si próprio e, para além da dúvida que arruína a «opinião racional», mostrar o caminho para a clareza e para a certeza do conhecimento intelectual. A. KOYRÉ, Considerações sobre Descartes Descartes viveu numa Europa profundamente dividida (política, religiosa e socialmente), possuída por uma curiosidade invulgar que se traduzia desde a realização das grandes viagens ao conhecimento das antigas civilizações, percorrida por uma total diversidade de opiniões e doutrinas, onde nenhuma autoridade permanecia inquestionável: a da ciência, da filosofia ou da fé, e onde a ruptura entre estas parecia inevitável. A situação essencial do homem dessa época era a dúvida, o cepticismo, o resultado mais grave e ameaçador que as circunstâncias da época haviam produzido e que podemos ver professado por autores brilhantes que, lucidamente, parecem renunciar a qualquer certeza, qualquer esperança, qualquer solidez no pensamento e na vida. Tal aconteceu a um pensador português de então, médico e filósofo ilustre, autor de uma das mais profundas e influentes obras do seu tempo: Quod nihil scitur. Dela são retiradas afirmações célebres, simultaneamente significativas das condições presentes e já anunciadoras de posições futuras: «É inato ao homem o querer saber; a poucos é dado o saber querer; a menos ainda o saber. Para mim não abriu a fortuna excepção. Desde o começo da minha vida prescrutava sem descanso. A princípio, o meu espírito, ávido de saber, contentava-se com qualquer alimento que se lhe oferecia; a breve trecho, porém, se lhe tornou impossível digerir e começou a vomitar tudo o que ingeria. Tratava eu já então de ver como todo o cuidado o que havia de dar-lhe que ele digerisse e assimilasse bem: nada havia que satisfizesse os meus desejos. Passava em revista as afirmações dos passados, sondava o sentir dos vivos: respondiam o mesmo; nada, porém, que me satisfizesse. Algumas sombras de verdade, confesso, me entremostravam alguns; mas não encontrei uma só que, com sinceridade e de uma maneira absoluta, dissesse o que das coisas devíamos julgar. Voltei-me então para mim próprio; e pondo tudo em dúvida, como se até então nada se tivesse dito, comecei a examinar as próprias coisas: é esse o verdadeiro meio de saber. Levava as minhas investigações até aos primeiros princípios. Iniciando aí as minhas reflexões, quanto mais penso, mais duvido: nada posso compreender bem. Desespero. No entanto persisto.» Francisco Sanches – Quod nihil scitur Descartes e o argumento céptico da regressão infinita Segundo o cepticismo, teoria filosófica acerca da validade do conhecimento, nunca podemos ter certeza alguma, pois existem sempre razões para duvidar, mesmo daquilo que nos parece óbvio e que habitualmente nunca questionamos, como, por exemplo, a certeza de que o mundo físico existe e é como parece ser. Para o cepticismo radical, o conhecimento verdadeiro não é possível, isto é, nunca podemos ter a certeza de que o nosso conhecimento da realidade reproduz fielmente a realidade nem mesmo que tal realidade existe, apresentando-nos o que os cépticos julgam ser um bom argumento, podendo ser formulado da seguinte forma: Se há conhecimento, então as nossas crenças estão justificadas. Mas as nossas crenças não estão justificadas. Logo, não há conhecimento. Este argumento é válido e se for sólido, teremos de aceitar a sua conclusão; caso não queiramos aceitar a sua conclusão, teremos de mostrar que não é sólido. A primeira premissa parece indisputável; isto porque não parece ser possível haver conhecimento sem justificação. Mas se a segunda premissa não parece tão evidentemente verdadeira; e isto porque não é óbvio que as nossas crenças – ou, ao menos, algumas delas – não sejam justificadas. Pretendendo o céptico que o seu argumento seja sólido, defende a sua segunda premissa recorrendo ao argumento céptico da regressão infinita, que pode ser formulado da seguinte forma: Todas as nossas crenças são justificadas com outras crenças. Se todas as nossas crenças são justificadas com outras crenças, então há uma regressão infinita. Se há uma regressão infinita, então as nossas crenças não são justificadas. Se as nossas crenças não são justificadas «, então não há conhecimento. Logo, não há conhecimento. Tal como o anterior, este argumento apresentado pelos cépticos é válido e se mais uma vez, se não queremos aceitar a sua conclusão, teremos de mostrar que pelo menos uma das suas premissas é falsa, tal Descartes fez ao tentar mostrar que o conhecimento é possível e que, portanto, os céptico estão enganados. Ou seja, em Filosofia, a principal preocupação de Descartes consistiu na refutação do cepticismo, procurando responder ao argumento céptico da regressão infinita; mostra que a primeira premissa é falsa, isto é, mostrando que não é verdade que todas as nossas crenças são justificadas com outras crenças. Mas este não é o principal problema. A Descartes não parece satisfatório mostrar que o céptico pode estar errado: ele pretende mostrar que o céptico está, efectivamente, errado e o seu principal pode ser formulado do seguinte modo: «Como poderemos garantir que o nosso conhecimento é absolutamente seguro?» Descartes pensava que podemos ter conhecimento acerca do Mundo no sentido mais forte que o termo admite: quando conhecer implica certeza, isto é, a impossibilidade de estarmos enganados. Esta ideia é, à primeira vista, um pouco estranha, pois deduzimos que serão os sucessivos avanços na Ciência moderna a melhor forma de provar que o conhecimento é possível. Temos seguramente a pretensão de possuir conhecimento, e a Ciência, com o seu cortejo de êxitos (mas também de fracassos), é um exemplo dessa pretensão. No entanto, acreditar que temos conhecimento não implica conhecer realmente alguma coisa, uma vez que, não possuímos garantias de que as nossas teorias científicas são verdadeiras nem razões nos levam a pensar que a Ciência assenta em fundamentos sólidos. Esta preocupação de Descartes de que acreditarmos que temos conhecimento não implicar conhecer realmente alguma coisa, não é assim uma preocupação tão estranha e afastada da realidade, uma vez que, Descartes viveu numa época que assistiu à ruína da Ciência antiga e medieval e à substituição da imagem do Mundo que aquela que contribuíra para manter inalterada ao longo de dez séculos. Descartes sabia que não temos de facto conhecimento se as nossas crenças (opiniões) forem falsas. Mas pensava também que ter a certeza de que as nossas crenças são verdadeiras implica ser capaz de as justificar racionalmente, algo que os cépticos julgam sermos incapazes de o fazer, apresentando o seguinte argumento. (1) Se não é possível justificar uma proposição A, então não é possível saber que A. (2) Dada qualquer proposição A, é sempre possível exigir a sua justificação. (3) Ou a série de justificações não tem um fim, e A fica por justificar, ou o pedido de justificação fica sem resposta, e A não tem justificação. Este argumento é completamente geral, mas a dúvida que o céptico nos convida a colocar não é convincente exactamente por ser tão geral, pois não é convincente que não possamos saber coisa alguma, é aliás, a ideia oposta que nos habituamos a considerar correcta, e, mesmo que não conheçamos tudo, sabemos com certeza algumas coisas. Admitamos que afirmo saber que A. Se for assim, tem de ser uma proposição verdadeira e a sua verdade tem de estar justificada. Suponhamos que B é uma razão para considerar A verdadeira. Neste caso, há duas possibilidades: ou eu sei que B ou B é apenas uma suposição. Se B for apenas uma suposição, não poderei dizer que conheço B. Em contrapartida, se não for uma simples suposição, há razões para pensar assim. Suponhamos que C é uma dessas razões. Existem de novo duas possibilidades: ou sabemos que C ou C não é mais do que uma suposição. O raciocínio anterior aplica-se a C como se aplicaria a qualquer razão D, E, F, etc., que queiramos introduzir parta justificar C. Dado a ordem das razões não ter limites, e que uma nova justificação pode sempre ser exigida, encontramo-nos perante uma regressão ao infinitivo, implicando que nenhum processo de justificação possa chegar ao fim. Contudo, na prática, há sempre um momento em que temos de parar, normalmente porque ficamos sem nada para dizer, isto é, não somos capazes de oferecer a justificação suplementar que nos foi pedida. Para o céptico, o nosso silêncio é um sinal claro da nossa ignorância. Descartes, na tentativa de evitar esta dificuldade, afirma que há proposições tão evidentes que não necessitam de justificação. O facto de serem tão evidentes faz com que não tenha sentido perguntar uma vez mais por que razão se justifica aceitá-las como verdadeiras. Proposições deste género são intrinsecamente fiáveis, isto é, a sua verdade não depende de outra posição ser verdadeira. Um exemplo de proposição intrinsecamente fiável é a ideia de eu para pensar é necessário existir. Segundo Descartes, esta ideia é intrinsecamente fiável porque a mente humana concebe-a de maneira tão evidente que, por maior que fosse o esforço, não é possível colocá-la em dúvida. São, na linguagem de Descartes, as ideias claras e distintas. Como as proposições claras e distintas não necessitam de uma justificação suplementar, é uma proposição clara e distintas que o conhecimento pode encontrar a sua justificação última. Há um momento em que a justificação tem de parar porque atingimos um ponto onde, dada a evidência da justificação, não precisamos de mais justificações. Para Descartes, demonstrar que o conhecimento é possível implica indicar pelo menos uma proposição intrinsecamente fiável que sirva de fundamento às restantes proposições. Esta perspectiva é designada por fundamento. O que há de característico no fundamentalismo é o facto de todos os conhecimentos estarem ordenados hierarquicamente: na base, um pequeno número de proposições intrinsecamente fiáveis que aceitamos sem necessidade de qualquer justificação suplementar; depois, as outras proposições, aceites devido às relações lógicas que mantêm com as primeiras. Descartes irá construir a sua teoria segundo este esquema. Para usarmos uma imagem habitual e sugestiva, digamos que o conhecimento pode ser comparado a um edifício (um edifício de proposições) cujas fundações temos de construir e cuja solidez é necessário assegurar. Tal como num edifício assenta nas fundações e delas depende para se manter solidamente ancorado, também a Ciência, no seu conjunto, é vista por Descartes como um edifício de proposições cuja verdade, em última análise, tem na sua base certas proposições claras e distintas que servem de fundamento ao todo. A criação do método e a «Mathesis Universal» Como entende Descartes a ciência? «Uma vez que todas as ciências não são mais do que a sabedoria humana, a qual permanece sempre una e sempre a mesma, por muito diferentes que sejam os objectos aos quais se aplica, e não recebe maior modificação a partir destes objectos do que a luz do sol a partir da variedade das coisas que ilumina, não se torna necessário impor limites ao espírito: o conhecimento duma verdade não nos impede, de facto, de descobrir uma outra, (…) antes a isso nos ajuda. (…) É portanto necessário convencermo-nos de que todas as ciências estão de tal modo ligadas entre si que é mais fácil aprendê-las todas ao mesmo tempo, do que isolar uma das outras. Se alguém quiser, pois, buscar seriamente a verdade, não deve optar pelo estudo duma qualquer ciência particular: pois estão todas unidas entre si e dependentes umas das outras; mas pense apenas em aumentar a luz natural da sua razão (…) para que, em cada circunstância da vida, a sua inteligência mostre à sua vontade o que deve escolher; e em breve ficará surpreendido por ter feito progressos superiores aos daqueles que se aplicam a estudos particulares, e por ter chegado não só a tudo o que os outros desejam, mas a resultados mais belos do que aqueles que eles podem esperar.» Regra I «Toda a ciência é um conhecimento certo e evidente; e aquele que duvida de muitas coisas não é mais sábio do que aquele que nunca pensou nelas: parece-me mesmo mais ignorante do que ele se, acerca de algumas, formou uma ideia falsa. Por isso mais vale nunca estudar do que ocupar-se de objectos de tal modo difíceis que, sem podermos distinguir o verdadeiro do falso, sejamos forçados a admitir por certo o que é duvidoso, pois não há então tanto a esperança sem aumentar o nosso saber, quanto o perigo de o diminuir. Assim, por esta regra, rejeitamos todos os conhecimentos que são apenas prováveis, e decidimos que não devemos dar o nosso consentimento se não àqueles que são perfeitamente conhecidos e dos quais não se pode duvidar.» Regra II Nestas regras, segundo Descartes, a ciência é una e única, pois o espírito que a constrói é o mesmo em todos os homens e funciona da mesma maneira «por muito diferentes que sejam os objectos aos quais se aplica»: a I Regra «funda o princípio da unidade do saber sobre a unidade da luz natural da razão, comparada à iluminação do Sol»(G. Rodis-Lewis – Descartes). Tem, assim, como ideal a universalidade, a intemporalidade. As diversas ciências ou saberes não são senão manifestações de um saber único, já que a multiplicidade infinita das coisas separa menos do que o espírito une: por outras palavras, na perspectiva cartesiana, o fundamental não é aquilo que se conhece, mas a maneira como é conhecido. Esta nova maneira de encarar as relações entre as ciências, baseada na identidade da actividade do sujeito cognoscente e não na natureza do objecto conhecido, vai dar origem a uma nova sistematização das ciências e a uma nova pedagogia. A ciência é um conhecimento certo e evidente, do qual são rejeitados, em situação de perfeita igualdade, o provável, o duvidoso e o falso. Isto nos leva naturalmente á conclusão de que o «sonho» de Descartes parece começar a cumprir-se. Pois, como podemos concluir, a doutrina expressa nas Regras não é senão o desenvolvimento da intuição que tivera cerca de oito ou nove anos antes, senão já desde os seus tempos de colégio: as diversas ciências «como ramos de uma só e mesma árvore» graças À aplicação generalizada do método que, no seu tempo, Descartes via ser apenas utilizado no domínio matemático, isto é, aos números e figuras. Quais são as operações do espírito que nos permitem chegar à verdade? «(..) Vamos agora passar em vista todos os actos do entendimento, pelos quais podemos atingir o conhecimento das coisas sem nenhum modo de erro: não se admitem mais do que dois, a intuição e a dedução. Por intuição entendo não o testemunho instável dos sentidos, nem o juízo enganador da imaginação que realiza composições sem valor, mas uma representação que é o acto da inteligência pura e atenta, representação tão fácil e distinta que não subsiste nenhuma dúvida acerca do que nela compreendemos; ou então, o que vem a dar no mesmo, uma representação inacessível à dúvida, representação que é o acto da inteligência pura e atenta, que nasce só da luz da razão, e que, porque é mais simples, é mais certa do que a dedução; todavia também esta, apontámo-lo anteriormente, não pode ser mal feita por um espírito humano. Deste modo, cada um pode ver por intuição que existe, que pensa, que o triângulo é delimitado apenas por três linhas, a esfera é apenas uma superfície, e outras coisas semelhantes, que são muito mais numerosas do que se apercebe a maior parte das pessoas, porque desprezam aplicar o seu espírito a coisas tão fáceis. (…) Ora esta evidência e esta certeza da intuição não são apenas requeridas para as simples enunciações, mas também para toda a espécie de processo discursivo. Seja, por exemplo, o seguinte resultado: 2 e 2 é igual a 3 mais 1; é preciso ver intuitivamente não só que 2 e 2 são 4, e que 3 e 1 são igualmente 4, mas, além disso, que a primeira se inclui, necessariamente, destas duas últimas. Poderão desde então interrogar-se porque à intuição juntamos um outro modo de conhecimento, o que se realiza por dedução; por ela entendemos o que se conclui necessariamente de certas outras coisas conhecidas com certeza. Foi necessário proceder assim, porque a maior parte das coisas são o objecto dum conhecimento certo, embora por si próprias não sejam evidentes; basta que sejam deduzidas de princípios verdadeiros, e já conhecidos, por um movimento contínuo e interruptor do pensamento que tem de cada termo uma intuição clara; é deste modo que sabemos que o último elo duma cadeia está ligado ao primeiro, mesmo que não vejamos num só e mesmo olhar o conjunto dos elos intermédios de que depende a ligação; basta que os tenhamos examinado um após outro e que nos lembremos que do primeiro ao último cada um deles está ligado aos seus vizinhos imediatos. Distinguimos, portanto, aqui, a intuição intelectual da dedução certa, na medida em que concebemos numa uma espécie de movimento ou sucessão e na outra, não; e porque, além disso, para a dedução não é necessária, ao contrário do que respeita à intuição, uma evidência intelectual, mas é antes à memória que, de certo modo, vai buscar a sua certeza. Daqui resulta que podemos dizer destas proposições que se concluem imediatamente a partir dos primeiros princípios, que as conhecemos tanto por intuição como por dedução, conforme o ponto de vista em que nos colocamos; mas que os primeiros princípios são conhecidos somente por intuição, enquanto as conclusões distantes só podem ser por dedução. Estas são as duas vias certas para chegar à ciência; do lado do espírito não devemos admitir mais, e todas as outras devem ser rejeitadas como suspeitas e expostas ao erro (…)» Regra III Este excerto da III Regra diz-nos que existem apenas duas vias para a construção da ciência, às quais correspondem a duas operações naturais da razão: são elas a intuição e a dedução. A intuição é «o acto da inteligência pura e atenta», «representação inacessível à dúvida…que nasce só da luz da razão», isto é, a intuição cartesiana é puramente intelectual e não sensível, é um olhar do espírito: e, como tal, os conceitos que apreendemos por intuição caracterizam-se pela sua simplicidade e evidência, pela sua absoluta certeza. Descartes dá exemplos: «cada um pode ver por intuição que existe, que pensa…» A dedução é a operação pela qual «se concluir necessariamente de certas outras coisas conhecidas com certeza», «é um movimento contínuo e intercepto do pensamento que tem de cada termo uma intuição clara»; por outras palavras, a dedução é a passagem duma intuição a outra intuição pela intuição da sua relação. Descartes, explica também: a afirmação de que 2 e 2 é igual a 3 mais 1 implica que vejamos que 2 e 2 são 4, que também vejamos que 3 mais 1 são 4, o que nos obriga a ver a igualdade entre elas. A dedução é., afinal, uma cadeia de intuições, uma intuição continua. Tal como expressivamente sublinha este autor: «Assim a dedução cartesiana não é senão a ordem das nossas intuições parciais da verdade. A intuição é, em definitivo, a única maneira de conhecer; a dedução é um subterfúgio pela qual, não podendo conhecer tudo simultaneamente, nós procuramos atingir o equivalente desse conhecimento total numa sucessão indefinida de conhecimentos incompletos. Mas, para que a dedução preencha esse papel, não basta que ela nos forneça uma série de intuições distintas umas das outras; porque a verdade total não é a simples soma dos seus elementos, as verdades parciais, ela é a sua unidade; é, pois, necessário que a dedução seja uma intuição contínua; é, pois, necessário que a dedução seja uma intuição contínua; é necessário que duma intuição nós passemos a uma nova intuição pela intuição da sua relação; é necessário que o espírito não deixe um momento só de compreender. E assim o pensamento poderá realizar em si mesmo, não dum modo imediato, por um acto absoluto, mas progressivamente e pela continuidade do desenvolvimento da sua acção imperfeita, a certeza ou conhecimento infalível da verdade». P. Landormy – Descartes, Mellotée Ed. Paris Segundo este autor, a intuição e a dedução distinguem-se por duas razões importantes: esta implica «uma espécie de movimento ou sucessão», existe um certo tempo para que se estabeleça a ligação entre os elos da cadeia, daí a necessidade da memória, ao passo que a intuição é absolutamente instantânea; como tal, a certeza da intuição é imediata, enquanto a da dedução é derivada, dependente de outras; e talvez seja esse o sentido em que Descartes diz que «a intuição é mais certa que a dedução». Mas o texto diz ainda outra coisa fundamental: «a maior parte das coisas são objectos dum conhecimento certo, embora por si próprias não sejam evidentes; basta que sejam deduzidas de princípios verdadeiros e já conhecidos». Quer isto dizer que, tal como referimos atrás, Descartes sabe que a maioria das nossas verdades são adquiridas a partir de outras, o que é sinal da limitação do nosso espírito, mas também do carácter progressivo do nossso conhecimento. Assim sendo, podemos afirmar que, para atingir o se mais alto grau de perfeição, isto é, para obter o maior número de conhecimentos certos, a razão necessita de conduzir-se de determinada maneira, percorrendo um caminho que lhe permita dispor as ideias segundo «a ordem das razões», ou seja, de tal modo que cada uma seja precedida de toadas aquelas de que depende, e que ela preceda todas as outras que dependem dela. «E é por isso – que intuição, dedução e ordem são noções inseparáveis. Sem intuição, a ordem nada seria, e permaneceria sem matéria. Sem a ordem, as intuições apresentar-se-iam ao acaso, como experiências fragmentárias, e o seu conjunto não constituiria um saber. Por isso o método se propõe simultaneamente descobrir o simples, objecto da intuição, e dispô-lo segunda a ordem, pela qual poderemos elevar-nos, como que gradualmente, e duma maneira racional, até ao conhecimento do complexo. Substituir o complexo que se apresenta, e se apresenta sem razão, numa espécie de experiência confusa e espontânea, por um complexo ordenado e racionalmente reconstruído, é que é efectivamente construir a ciência». F. Alquié – Ob.cit Em suma, segundo Descartes a razão é essencialmente metódica no seu funcionamento, ou, como ele diz no início do Discurso, «o bom senso é a coisa do mundo mais bem distribuída …o bom senso ou a razão é naturalmente idêntica em todos os homens… não basta ter o espírito bom, o principal é aplicá-lo». Em que consiste o método que «ensina a seguir a verdadeira ordem?» Como caracterizá-lo? «Quanto ao método, entendo por tal regras certas e fáceis, cuja observação exacta fará que qualquer pessoa nunca tome nada de falso por verdadeira, e que, sem despender inutilmente o mínimo esforço de inteligência, chegue, por um aumento gradual e contínuo da ciência, ao verdadeiro conhecimento de tudo o que for capaz de conhecer». Regra IV Essas regras, que pressupõem como facilmente verificamos, o que anteriormente ficou expresso (I Regra), ou seja, uma ordem universal e única da natureza e, portanto, a unidade da ciência – são enunciados por Descartes na II parte do Discurso, e duma maneira clara e precisa. As regras cartesianas são a regra evidência, da análise, da síntese e da enumeração. A primeira afirma que só é verdadeiro aquilo que se apresenta à razão como evidente, como impossível de ser posto em dúvida; o que só acontece com as ideias claras (isto é, suficientemente nítidas para não serem confundidas com quaisquer outras) e distintas (isto é, aquelas cujo conteúdo comporta todos os elementos que efectivamente lhe pertencem). É para que não tomemos por verdadeiras senão as ideias claras e distintas, as ideias evidentes, há que evitar a precipitação e a prevenção, ou seja, a irreflexão e os preconceitos, o que nos obriga a sermos simultaneamente prudentes e audazes, sujeitando-as todas, necessária e previamente, ao filtro, ao exame, ao tribunal da dúvida. A segunda regra, que consiste «em dividir cada uma das dificuldades que tivesse de abordar no maior número de parcelas que fossem necessárias para melhor resolver» é, como facilmente verificamos, um processo regressivo do pensamento que caminha dos efeitos às causas, das consequências aos princípios, numa palavra, é a descoberta da hipótese. Aliás, nós conhecemo-lo de o usarmos na matemática onde frequentemente «pões em equação» as posições desconhecidas cuja veracidade procuramos demonstrar ligando-as a outras que já conhecemos e mostramos serem os princípios que as explicam. Da análise matemática Descartes reteve exactamente isso: a determinação das desconhecidas. Em suma, a análise é o grande processo inventivo e Descartes foi a aperceber-se do seu imenso valor. Encontrados os princípios, as «naturezas simples» explicativas e fundamentadoras das ideias complexas de que partíramos, é naturalmente necessário percorrer um caminho inverso, de tal maneira que, partindo da intuição do simples, caminhemos, por dedução progressiva, até chegarmos até chegarmos ao mais complexo. Se a análise é o grande processo inventivo, pois ela permite chegar às ideias evidentes, e portanto verdadeiras, que suportam todas as outras, a síntese, que supõe feita a análise e descobertos esses princípios, é mais fácil de seguir, pois parte do simples para o complexo, e, como tal, é mais «própria para convencer os leitores teimosos e pouco atentos». Todavia «ela obtêm o consentimento do leitor, mas não ensina o método pelo qual a coisa foi inventada». Porém, Descartes sabia e afirmava os limites do nosso espírito, a impossibilidade de tudo apreendermos ou intuirmos simultaneamente, a necessidade de deduzirmos caminhando lentamente. Quer isto dizer que se torna necessário praticarmos encadeamentos por vezes longos de intuições sucessivas que a nossa razão não consegue abranger simultaneamente. Para o que se torna indispensável certificarmo-nos de que todas as relações necessárias foram estabelecidas, não houve saltos indevidos, a cadeia das razões foi respeitada. E aqui podemos recorrer à memória que fará “desfilar” perante o nosso espírito as imagens dos elementos de que nos servimos ao raciocinar, fornecendo-nos como que os “esqueletos” do nosso próprio pensamento. É exactamente este o sentido da última regra que «recomenda a enumeração exaustiva de todas as condições necessárias à solução do problema, quer, no sentido horizontal, os diversos elementos encadeados, quer, no sentido horizontal, os diversos graus intermediários – os diferentes casos ou diferentes momentos da dedução» (J. Laporte – Le Rationalisme de Descartes). É de referi que, não nos seria possível compreender estes processos de pensamento se nos esquecêssemos que eles se implicam mutuamente, porque têm, afinal, um objectivo único, que é dar ao homem a intuição da verdade. «Só a intuição dá a certeza; não há ciência para quem não usar a intuição. É preciso ver; mas para ver claro naquilo que é complexo é preciso ordenar os seus elementos; e para ordenar os elementos é necessário, previamente, tê-los à disposição, retê-los e ter deles a representação. A intuição supõe a dedução (analítica ou sintética), e a dedução supõe, por sua vez, a acção da imaginação e da memória, a enumeração» P. Landormy – OB. Cit Com isto, podemos concluir que, o método cartesiano é universal na sua aplicação; fecundo nos seus pensamentos; matemático na sua inspiração, no modelo que preconiza. A fundamentação metafísica da ciência O percurso do espírito para a verdade Da dúvida ao cogito A dúvida traduz um momento importante do método, em que por meio dela, recusamos tudo aquilo em que tornamos mínima a suspeita de incerteza, embora as verdades da Revelação, por pertencerem ao âmbito da fé e do sobrenatural, não sejam sujeitas à dúvida. A dúvida é apenas o método a que Descartes decidiu recorrer para mostrar que os cépticos estão enganados, e que, por muitas extremas que as nossas dúvidas sejam, no final, somos conduzidos a uma verdade de que não se pode duvidar, ou seja, a dúvida é um método para alcançar a certeza. «Que para examinar a verdade é necessário, uma vez na vida, colocar todas as coisas em dúvida, tanto quanto se puder. Como fomos crianças antes de sermos homens, e julgarmos ora bem ora mal as coisas que se apresentaram aos nosso sentidos, quando não tínhamos ainda o pleno uso da nossa razão, vários juízos assim precipitados impedem-nos de atingir o conhecimento da verdade, e predispõem-nos de tal modo que nada indica, uma vez na vida, de todos as coisas em que encontramos a menor suspeita de incerteza». Descartes, Princípio da Filosofia Instrumento da luz natural ou razão, a dúvida é posta ao serviço da verdade. É necessário colocar tudo em causa, no processo de busca dos princípios fundamentais e indubitáveis. A dúvida cartesiana é metódica e provisória, uma vez que, é apenas um meio para atingir a certeza, não constituído um fim em si mesma. É universal e radical, pois incide não só sobre o conhecimento em geral, como também sobre os seus fundamentos, as suas raízes. Por outro lado, a dúvida cartesiana é hiperbólica, uma vez que, rejeita como se fosse falso tudo aquilo em que se note a mínima suspeita de incerteza. O texto anterior assinala a importância da dúvida perante os juízos precipitados contudo, não são estes as únicas razões para duvidar como podemos concluir a partir da análise do seguinte texto: «Sem dúvida, tudo aquilo que até ao presente admiti como maximamente verdadeiro foi dos sentidos ou por meios dos sentidos que o recebi. Porém, descobri que eles por vezes nos enganam, e é de prudência nunca confiar totalmente naqueles que, mesmo uma só vez, nos enganaram. Mas, ainda que os sentidos nos enganem algumas vezes sobre coisas pequenas e afastadas, há todavia muitas outras de que não podemos absolutamente duvidar, embora as recebemos por eles; como, por exemplo, que estou aqui, sentado junto à lareira, vestido com um roupão de Inverno, que toco este papel com as mãos e outros factos semelhantes. (…) Quantas vezes me acontece que, durante o repouso nocturno, me deixo persuadir de coisas tão habituais como que estou aqui, com o roupão vestido, sentado à lareira quando, todavia, estou estendido na cama e despido. (…) Como se não me recordasse de já ter sido enganado em sonhos por pensamentos semelhantes! Por isso, se reflicto mais atentamente, vejo com clareza que vigília e sono nunca se podem distinguir por sinais seguros. (…) Pelo que talvez não concluamos erradamente se dissermos que a Física, a Astronomia, a Medicina, e todas as outras ciências que dependem da consideração das coisas compostas, são de facto duvidosas, mas que a Aritmética, a Geometria, e outras ciências desta natureza, que só tratam de coisas extremamente simples e gerais e não se preocupam em saber se elas existem ou não na natureza real, contêm algo certo e indubitável. Porque, quer eu esteja acordado quer durma, dois e três somados são sempre cinco e o quadro nunca tem mais do que quatro lados; e parece impossível que verdades tão evidentes possam incorrer na suspeita de falsidade. Todavia está gravada no meu espírito uma velha crença, segundo a qual existe Deus que pode tudo e pelo qual fui criado tal como existo. Mas quem me garante que ele não procedeu de modo que não houvesse nem terra, nem céu, nem corpos extensos, nem figura, nem grandeza, nem lugar, e que, no entanto, tudo isto me parecesse existir tal como agora? E mais ainda, assim como concluo que os outros se enganam algumas vezes naquilo que pensam saber com absoluta perfeição, também eu me podia enganar todas as vezes que somasse dois e três ou contasse os lados de um quadrado, ou em algo de mais fácil ainda, se é possível imaginá-lo. Porventura Deus não quis que eu me enganasse deste modo, ele que dizem que é sumamente bom; todavia, se tivesse repugnado à sua bondade criar-me tal que eu me enganasse sempre, também parecia não convir com ela que eu me enganasse algumas vezes, o que, no último caso, não pode afirmar-se que não permite. (…) Vou supor, por consequência, não o Deus sumamente bom, fonte da verdade, mas um certo génio maligno, ao mesmo tempo extremamente poderoso e astuto, que pusesse toda a sua indústria em me enganar. Vou acreditar que o céu, o ar, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas exteriores não são mais que ilusões de sonhos com que ele arma ciladas à minha credulidade. Vou considera-me a mim próprio como não tendo mãos, não tendo olhos, nem carne, nem sangue, nem sentidos, mas crendo falsamente possuir tudo isto. Obstinadamente, vou permanecer agarrado a este pensamento e, se por este meio não está no meu poder conhecer algo verdadeiro, pelo menos está no meu poder que me guarde com firmeza de dar assentimento ao falso, bem como ao que aquele enganador, por mais poderoso, por mais astuto, me possa impor. I Meditação «No entanto, não há dúvida de que também existo, se me engana; que me engane quanto possa, não conseguirá nunca que eu seja nada enquanto eu pensar que sou alguma coisa. De maneira que, depois de ter pesado e repesado muito bem tudo isto, deve por último concluir que esta proposição Eu sou, eu existo, sempre que proferia por mim ou concebia pelo espírito, é necessariamente verdadeira». II Meditação Como podemos concluir, existem inúmeras razões para duvidar, a que chamamos razões naturais, nomeadamente, por acusa dos preconceitos e dos juízos precipitados que formulamos na infância, como já concluímos no primeiro texto apresentado; porque os sentidos nos enganam e «seria imprudência confiar demasiado naqueles que nos enganaram, mesmo quando tivesse sido só uma vez»; porque não temos um critério que permita discernir o sonho da vigília; porque alguns homens se enganaram nas demonstrações matemáticas; e porque é possível que exista um deus enganador, ou um génio maligno, que nos ilude a respeito da verdade, fazendo com que estejamos sempre enganados, seja no tocante às verdades e às demonstrações matemáticas, seja no que se refere à própria existência das coisas (daí o carácter metafísico da dúvida). A nível das meditações, podemos verificar que, na I Meditação, a referência ao conhecimento sensível implica um problema inteiramente novo: o que Descartes põem em causa não é a adequação entre as nossa percepções e os objectos externos, mas a própria existência destes. Quer isto dizer que, Descartes coloca de imediato um problema ontológico. Pela primeira vez na história do pensamento, a existência do mundo exterior, a correspondência do pensamento com a coisa por detrás dele, são postas em questão. Mas Descartes coloca ainda um outro problema de igual importância: ele que desde sempre admirar e se satisfizera com a evidência e a certeza das matemática: que, ao formular o seu método, lhes dera uma função exemplar; ele comete agora a ousadia de admitir que «eu me podia enganar todas as vezes que somasse dois e três ou contasse os lados de um quadrado». Isto é, a dúvida atinge todas as ciências sem excepção. O que significa que Descartes põem em causa a validade da própria razão, a sua capacidade par distinguir a verdade. A dúvida torna-se metafísica. Do cogito a Deus Ainda que quase nenhuma das nossas crenças seja indubitável, Descartes pensa que há algo de que não podemos duvidar. Afinal, se estamos a colocar as nossas crenças em dúvida, estamos a duvidar, e duvidar é uma forma de pensar. E, se estamos a pensar, então existimos. Cada um de nós pode então afirmar com toda a segurança: Eu penso, logo existo. Esta afirmação é conhecida como cogito. Para Descartes, o cogito constitui o fundamento certo do conhecimento, pois nem mesmo um génio maligno poderia enganar-nos no que respeita à nossa própria existência. Repare-se que o cogito nos assegura apenas da nossa própria existência enquanto seres pensantes. À partida, cada um de nós pode ter apenas a certeza de que é uma «substância» cuja natureza é o pensamento. O cogito proporciona um ponto de partida seguro par o conhecimento, mas de forma a avançar a partir do cogito, Descartes começa por sugerir uma explicação para a certeza que o cogito exibe. Estamos absolutamente certos de que o eu penso, logo existo é uma verdade porque compreendemos com toda a certeza e distinção que para pensar é preciso existir. Como tal, Descartes admite então a seguinte regra geral: É verdadeiro tudo aquilo que concebemos muito claramente e muito distintamente. Este é o critério das ideias claras e distintas. Se, como no caso do cogito, temos uma percepção intelectual completamente clara e distinta da ideia considerada, podemos ter a certeza de estar perante uma ideia verdadeira. Apesar de evidente, o cogito não é suficiente para fundamentar o “edifício do saber”. A certeza Penso, logo existo é uma certeza subjectiva. Não se consegue alcançar uma efectiva fundamentação do conhecimento sem se descobrir o que se encontra na base do pensamento e na origem da existência do sujeito pensante. Partamos das ideias que estão presentes no sujeito. Elas possuem um conteúdo que representa alguma coisa. Dessas ideias, umas serão adventícias, ou seja, têm origem na experiência sensível; outras factícias, fabricadas pela imaginação; por fim há também ideias inatas: são ideias constitutivas da própria razão. Como já sabemos, as ideias inatas são claras e distintas e podem ser caracterizadas como as «”sementes das ciências”», ou “verdades eternas”. De entre as ideias inatas que possuímos encontra-se a noção de um ser omnisciente, omnipotente e sumamente perfeito. A ideia de ser perfeito servirá de ponto de partida para a investigação relativa à existência do ser divino. Descartes demonstra a existência de Deus mediante três provas. A primeira prova parte da constatação de que na ideia de ser perfeito estão compreendidas todas as perfeições. A existência é uma dessas perfeições. Por consequência, Deus existe. O facto de existir é inerente à essência de Deus, de tal modo que este ser não pode ser pensado como não-existente. A sua existência apresenta um carácter necessário e eterno. Esta prova é designada o argumento ontológico., sendo desenvolvida a priori, sem recurso à causalidade ou à experiência. A segunda prova toma igualmente como ponto de partida a ideia de ser perfeito. Podemos procurar a causa que faz com que essa ideia se encontre em nós. Tal causa não pode ser o sujeito pensante. De facto, essa ideia representa uma substância infinita. Nesse sentido, o sujeito pensante, sendo finito, não é a causa da realidade objectiva de tal ideia. O nada também não pode ser a sua causa, nem qualquer ser imperfeito. A causa da ideia de Deus não é outro ser senão Deus. Com efeito, Deus é uma realidade que possui todas as perfeições representadas na ideia de ser perfeito. Concluindo, é ele o próprio ser perfeito e a causa originária da ideia de perfeição. A terceira prova baseia-se também no princípio da causalidade. O que agora se procura saber é qual a causa da existência do seu pensamento, que é um ser finito, contingente, imperfeito. Essa causa não é o sujeito pensante. Se o fosse, com certeza que ele se daria a si próprio as perfeições das quais possui uma ideia. Ora, isso não se verifica. Por outro lado, e partindo do princípio de que a criação é uma acção contínua – já que a natureza do tempo é descontinua, e nada garante ao sujeito pensante que existirá no momento –, o sujeito finito apercebe-se de que não possui o poder de se conservar no seu próprio ser. Tal aconteceria se ele fosse causa e efeito de si mesmo. Por isso, o criador (e conservador) do ser imperfeito e finito, assim como de toda a realidade, é Deus. Por sua vez, sendo perfeito, Deus não necessita de ser criado por outro ser: ele é causa sui) é causa de si mesmo). Assim, Deus, sendo perfeito, não é um ser enganador, pelo que nos encontramos libertos da dimensão hiperbólica e mais corrosiva da dúvida. Deus é a garantia da verdade objectiva das ideias claras e distintas. Sendo criador das verdades eternas, a origem do ser e o fundamento da certeza, Deus garante a adequação entre o pensamento evidente e a realidade, legitimando o valor da ciência e conferindo validade e objectividade ao conhecimento. Deus é o fundamento do ser e do conhecimento. Ale disso, Deus é também infinito, a fonte do bem e da verdade; é omnipotente, eterno, omnisciente e, embora sendo o criador do Universo, não é o autor do mal, nem é responsável pelos nossos erros. Conclusão: René Descartes foi um filósofo racionalista em que, o racionalismo é a doutrina epistemológica que defende que a razão é por direito próprio uma fonte de conhecimento, estando esta ideia presente em Descartes sob várias modalidades. Em primeiro lugar, Descartes pensava que podemos intuir a verdade de certas proposições por meios estritamente racionais e sem o recurso à experiência. É nesta intuição puramente racional que se apoia a tese de que as proposições claras e distintas têm de ser verdadeiras. Podemos, por exemplo, com base numa avaliação racional, determinar como verdadeiras as proposições básicas da Geometria e da Matemática. Das proposições que intuímos como verdadeiras, podemos deduzir outras proposições cuja verdade é também considerada a priori. Os fundamentos do conhecimento (o cogito e Deus) podem ser conhecidos desta forma, bem como a distinção entre o corpo e a mente. Descartes é considerado o primeiro filósofo "moderno". A sua contribuição à epistemologia é essencial, assim como às ciências naturais por ter estabelecido um método que ajudou o seu desenvolvimento. Descartes criou, em suas obras Discurso sobre o método e Meditações – ambas escritas no vernáculo, ao invés do latim tradicional dos trabalhos de filosofia – as bases da ciência contemporânea. Bibliografia: ALMEIDA, Aires et alii (2008), A arte de Pensar Filosofia / 11.ºano, Lisboa, Didáctica Editora AGULAR, Maria, ALBERGARIA, Maria (1990), Filosofia 11, s/l, Areal Editores LIMA, Teresa, SANTOS, Maria (1990), O Saber e as Máscaras / Filosofia 11.º ano, Porto, Porto Editora PAIVA, Marta et alii (s/d), Contextos / Filosofia 11.º ano, s/l, Porto Editora LOPES, Paulo (2008), Logos / Filosofia 11.º ano, s/l, Santillana Constância
Traduções portuguesas de obras de Descartes: DESCARTES, René (1988), Meditações sobre a Filosofia Primeira, Coimbra, Livraria Almedina DESCARTES, René (1991), Discurso do método, Porto, Porto Editora DESCARTES, René (2005), Princípios da Filosofia, Porto, Areal Editores
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