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Filosofia Moderna

ROUSSEAU
A Educação da Consciência

Autor: Maria Inês Dourado

Data de Publicação: 10/07/2007

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ROUSSEAU

A Educação da Consciência

 

1.  INTRODUÇÃO [1]

 

Observando o fenómeno humano notamos imediatamente que ele se nos apresenta como um corpo que se define pelas coordenadas de espaço e tempo. O homem é de facto um corpo. Ele vive num meio material que o condiciona e que determina todas as suas manifestações. Inicialmente este carácter de dependência do homem verifica-se em relação à natureza, entendendo esta como aquilo que existe independentemente da sua acção. É sabido que o homem depende do meio no qual vive, mas não é só o meio natural que o condiciona como também o ambiente cultural lhe é imposto de um modo inevitável. Assim que o homem nasce, além de necessitar de um meio geográfico mais ou menos favorável, confronta-se com uma época já com contornos históricos, com o peso de uma tradição longa e delineada, com uma linguagem estruturada, com costumes e crenças já definidos, uma sociedade com instituições, com uma vida económica e com uma forma de governo que denota os seus poderes. Enfim, o homem nasce naturalmente mas mal nasce já está corrompido. Mal a criança põe ‘os pés no mundo dos homens’ já entrou em degeneração: “Tudo está bem quando sai das mãos do autor das coisas, tudo se degenera entre as mãos do homem.”[2]

Mas, ainda que a percepção imediata do fenómeno humano nos apresente ‘apenas um corpo’ situado no tempo e no espaço, ele é muito mais do que essa mera referência material e intelectual, ele tem ‘forças e desejos’. E é precisamente este o ponto de vista de Rousseau.

Este filósofo vive nos meados do século XVIII e, dentro do seu contexto cultural, convive com figuras notáveis como Diderot, D’Alembert e Voltaire entre outros. No entanto, ao invés de compartilhar com o ideal iluminista destes pensadores que, para tornar as sociedades melhores, acreditavam na exaltação do progresso das ciências e das artes e da crença de que a difusão do saber iria pôr fim não só aos preconceitos como também à ignorância, Rousseau vê decadência, luxo e vaidade nesse ideal e torna-se, por este motivo e por muitas vezes, o centro de debates e discussões. No entanto, o seu pensamento tem um grande impacto em pensadores vindouros. Por exemplo, Kant foi assumidamente um dos maiores (se não o maior) ‘admiradores’ de Rousseau. Entre várias atenuantes que levaram Kant a esta profunda admiração, uma delas era o facto de Rousseau ser o filósofo que mais claramente fazia a distinção entre “a máscara e a verdadeira face do homem”[3]. Mediante uma linguagem simples e plena de realidade, Rousseau soube discernir a diferença entre o homem ideal e o homem real e confrontá-los. E esta é outra das atenuantes compartilhadas por Kant, já que este “procura a coerência não naquilo que o homem é, mas naquilo que ele deveria ser[4].

No seu método racional e ‘prático’, Rousseau não vê apenas regras que se extraem dos ”…princípios de uma alta filosofia”, ele vê algo mais forte do que isso, pois encontra essas regras “…escritas no coração, escritas pela natureza em caracteres indeléveis.”[5]. Rousseau coloca sempre a emoção à frente da razão intelectual e da natureza autêntica do homem, em detrimento dos artifícios criados pela vida civilizada. Este filósofo garante que o afastamento do homem da felicidade se deve ao facto deste se inserir cegamente na sociedade, e este ponto de vista está bem patente não só no Emílio como também em toda a sua obra. Neste ‘romance pedagógico’ - Emílio ou Da Educação - Rousseau faz valer os direitos do indivíduo na infância e na juventude e impulsiona inovações pedagógicas. Só depois de Rousseau tirar a máscara da sociedade no contexto da educação e ‘pôr a nú’ estes direitos, é que se ‘descobre’ realmente o que é ser criança e ser jovem (o futuro homem/mulher), tal como o iluminismo descobriu nos ‘nobres selvagens’ dos ‘povos naturais’, a imagem oposta, às vezes transfigurada, da civilização.

Rousseau é apologista da necessidade da experiência directa na aquisição do conhecimento, da simplicidade e da intuição no lugar da intelectualidade pois a inexperiência leva o homem à perdição. Para o ‘filósofo dos paradoxos’ quando o homem se esquece de si e cai na civilização desenfreada, degradam-se os seus costumes, perde a liberdade (conceito que começa a existir a partir do momento em que o homem entra na sociedade civil) e a desigualdade atinge uma exacerbação tal que leva à existência de escravos e senhores na mesma sociedade. Desta forma, o Emílio surge como um ‘grito’ contra as estruturas de aparências do mundo civilizado. O homem natural deve prestar atenção aos seus instintos naturais para saber lidar com eles e para isso é necessário que seja educado longe do mundo para que, mais tarde, possa actuar nesse mundo mas com consciência, porque ainda que digam “…que a consciência é obra dos preconceitos; no entanto, sei por minha experiência que ela se obstina em seguir a ordem da natureza contra todas as leis dos homens”[6]. É a consciência que nos dita as regras e não as leis dos homens. Estas vêm depois. As leis do homem podem até existir mas se a consciência de cada um não ‘aconselhar’ uma boa utilização dessas leis, de nada serve ao homem ditá-las.

O Livro IV de Emílio, essencialmente a Profissão de Fé do Vigário Saboiano, está repleto de máximas de moralidade que formarão integralmente o Emílio: este futuro homem e futuro cidadão que aprende artes, que escolhe uma profissão, que aprende política e que até se prepara para o matrimónio mas numa condição que Rousseau considera primordial para a educação da criança, que será o futuro homem-cidadão: afastá-lo do ‘bulício’ corrupto e mundano, porque se lhe mostrarmos “… o mundo antes que ele conheça os homens não é formá-lo, é corrompê-lo; não é instruí-lo, é enganá-lo”[7]. Se a sociedade é moralmente corrupta, então a única possibilidade que se tem para educar a criança de modo a que se transforme, gradualmente, num homem livre e a actuar sob os princípios da virtude, é o seu isolamento ou afastamento dessa sociedade até à idade da razão e das paixões. Até lá, a criança pode até ter poucos conhecimentos mas os que tem são realmente seus. A criança deve conhecer-se primeiro a si própria, conhecer as coisas e o homem, e só depois deverá conhecer o mundo.

O Livro IV de Emílio acompanha o ‘grande salto’ que representa a idade da puberdade no ser humano. Esta idade implica uma modificação brusca nas motivações da educação e a estrutura deste livro acompanha essa modificação. Rousseau, nos primeiros três livros desta obra, ‘trata da educação do físico’ em conformidade com a natureza, que é uma das ideias centrais da educação rousseauneana. Ou seja, privilegia primeiro os princípios utilitários da vida, mas dota-os da sapiência que julga necessária ao seu aluno para que este possa alcançar o máximo possível de inteligência prática e qualidades humanas. Seguidamente, nos Livros IV e V (e de modo exclusivo na Profissão de Fé do Vigário Saboiano, inserido no Livro IV), Rousseau ‘trata da educação da alma’, ou seja, da educação da consciência moral e religiosa: “Trabalhamos em concerto com a natureza, e enquanto ela forma o homem físico, nós procuramos formar o homem moral”[8], já que somos nós, a sociedade civilizada, que o colocamos na via dessa necessidade.

Constata-se que, na maior parte das suas obras, Rousseau não trata a política e a moral separadamente, facto em que o Emílio não é excepção se tivermos em conta que, para além de haver um desenvolvimento de pensamentos sobre a educação, Rousseau concebe uma teoria normativa do comportamento do homem e da sociedade que representa um autêntico projecto de cidadania e que, para uma melhor compreensão deste projecto, o seu O Contrato Social dá um grande contributo.

 

 

2.  A EDUCAÇÃO  DA CONSCIÊNCIA

 

No nosso quotidiano, na vida prática, não são raras as vezes que quando se fala no dualismo educação-consciência, uma das primeiras deduções que irreflectida e tendencialmente se faz, é a seguinte: uma boa educação implica uma boa consciência, da mesma maneira que uma pessoa consciente implica que teve uma boa educação. No entanto, problematizando a dedução, questiona-se de imediato: Mas quantas crianças têm uma ‘boa educação’ e, quando adultos, constata-se constantemente ‘falta de consciência’ nas suas atitudes, enquanto que muitas não têm uma ‘boa educação’ e, no entanto, quando adultos são ‘pessoas conscientes’!? No entanto, se for feita uma reflexão cuidada sobre esta problematização, pergunta-se: Será este o modo correcto de pensar ‘a consciência’? Será que quando fazemos depender uma boa consciência de uma boa educação estamos certos? Se a consciência é algo de inato, será que a educação influencia a consciência, que permanece ‘adormecida’ no homem natural, quando esta desperta para o mundo? Ou seja, preciso de educação para ter consciência das coisas ou tenho consciência delas inatamente mas necessito de ‘educá-la’ para as entender bem e as levar a bom termo? O que é, então, ‘educar a consciência’? O que é que quererá dizer ‘ter consciência das coisas’?

Não há dúvida que, quando ‘problematizamos a consciência’, somos confrontados com uma plêiade de interrogações. Tal facto coloca imperativamente, pelo menos mais uma questão, a derradeira questão: Mas afinal o que é que a consciência?

A definição mais presente, no quotidiano de uma sociedade, é aquela que é sintetizada pelos dicionários. Por exemplo, o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa dá-nos algumas definições para a palavra ‘consciência’: Conhecimento que se tem da própria existência; noção que a pessoa tem do que se passa, através da interpretação das informações fornecidas pelos sentidos; apreensão clara dos factos, da realidade; conhecimento que a pessoa tem dos próprios fenómenos psíquicos; conjunto de fenómenos conscientes [9], etc. Contudo, na vida prática, o conceito de consciência é muito mais do que meras definições linguísticas. Por exemplo, quando um médico diz que o paciente está consciente não quer dizer a mesma coisa que o cidadão que se diz consciente, ou quando o patrão se refere ao funcionário e diz que este faz as tarefas com consciência, ou ainda, quando a mãe se refere ao seu filho e diz que este tem consciência de como as coisas são. Embora todas as situações expostas sejam diferentes, as referências estão sempre ‘no individuo’. Ou seja, em cada uma das diferentes situações, a referência de cada um dos intervenientes, i.é., do médico, do cidadão, do patrão e da mãe, pode estar sempre ‘no mesmo individuo’. São as faces de um mesmo individuo, faces de um todo que dele fazem parte e a que chamamos ‘consciência’: a voz da sua alma, a fonte de tudo o que é sublime no ser humano[10], a responsável por todos os estados a que chamamos estados de consciência.

Não há dúvida que, ao lermos o Emílio, especialmente a Profissão de Fé do Vigário Saboiano, nos apercebemos que Rousseau sublima a ‘voz da alma’, ou seja, a consciência. Esta exaltação é bem evidente quando Rousseau, com uma entoação quase ‘salmódica’, nos diz: “Consciência! Consciência! Instinto divino, imortal e celeste voz; guia seguro de um ser ignorante e limitado, mas inteligente e livre; juiz infalível do bem e do mal, que tornas o homem semelhante a Deus, és tu que fazes a excelência da sua natureza e a moralidade das suas acções; sem ti nada sinto em mim que me eleve acima dos animais, a não ser o triste privilégio de me perder de erros em erros com o auxílio de um entendimento sem regra e de uma razão sem princípio.”[11]. Rousseau define consciência de uma forma tão plena de sentimento, que nos deixa quase sem recurso a definições tão completas e exaltantes. Realmente, a consciência é o cume do conhecimento humano. É a voz de mim para mim, é o meu ‘guia espiritual’. Diz-me se estou trilhar um bom ou um mau caminho. Segreda-me passiva e insistentemente as suas ordens ou os seus conselhos. Dita-me a minha disposição: se me diz que estou bem, eu estou bem; se me diz que estou mal, eu estou mal. A consciência é um conhecimento concomitante, um saber que já se sabe. Ela manda e eu obedeço. Tal como diz Rousseau: “A consciência é a voz da alma, as paixões são a voz do corpo”[12]. Ela é, indubitavelmente, “… o melhor dos casuístas”[13]. A consciência é de todos, ou seja, não precisamos de ser ‘doutos’ para a possuir como guia, “…podemos ser homens sem ser doutos; dispensados de consumir nossa vida no estudo da moral, dispomos por um preço menor de um guia mais seguro neste labirinto imenso das opiniões humanas. Mas não basta que esse guia exista, é preciso saber reconhecê-lo e segui-lo”[14]

A partir do momento em que o indivíduo começa a ter consciência de si, em momentos distintos o mesmo indivíduo experimenta faces diferentes que ficam em evidência de acordo com a situação (tal como acontece no exemplo acima referido). Mas ainda que a consciência esteja ‘no individuo’, estabelece-se a partir do ambiente em que ele está inserido, i.e., na interacção do indivíduo com o meio em que vive. O meio interfere na formação do seu carácter. A criança que é educada exposta a todo o tipo de perigos gerados pela vida em sociedade, certamente que, porque é vulnerável, tem mais probabilidades de vir a ser um jovem, e consequentemente um homem, problemático. Daí que Rousseau considere o correlato criança-meio ambiente de extrema importância para a sua educação, pois se “tudo o que não temos ao nascer e de que precisamos quando grandes nos é dado pela educação”, então que ela seja dada num ambiente o mais isento possível de perigos. Enquanto crianças, nós vivemos e não temos consciência da nossa própria vida[15], somos ´dotados´ de consciência mas temos que saber reconhecê-la e saber segui-la. Sendo assim, a criança tem que ser educada, moldada tal como se moldam as plantas pela cultura[16] e, desta forma, o seu isolamento nas primeiras fases da sua educação é primordial para uma boa orientação da consciência. Se o ser humano é naturalmente bom, então, ao afastar-se da civilização no momento exacto, evitar-se-ão os constrangimentos de um crescimento perigosamente acelerado, turbulento e cheio de maus hábitos.

 Verifica-se, então, que em relação à educação Rousseau tem como pressupostos básicos a crença na bondade natural do homem e na imputabilidade do mal à sociedade. Desta forma, se a criança estiver afastada da má influência de uma sociedade corrupta e tiver um desenvolvimento protegido e adequadamente natural, a sua bondade natural é estimulada para a aquisição de bons hábitos e os primeiros objectivos serão atingidos: o desenvolvimento das suas potencialidades naturais e um ‘suave’ despertar da consciência. Um passivo e natural caminhar para os princípios da virtude.

Se “A educação certamente não é senão um hábito”[17], então a criança deve ser educada com base nas suas motivações naturais porque, sendo ela um ser sensível desde o seu nascimento, certamente que irá ser afectada de diversas maneiras por tudo aquilo que a cerca, adquirindo assim o seu primeiro contacto com a consciência mas, numa primeira fase, apenas com a ‘consciência das suas sensações’. A partir daqui, começará a fazer ‘os seus’ próprios juízos que, por ser criança, mais não são do que a lembrança das referidas sensações, cultivando-os ou evitando-os segundo a memória que tem das sensações. Muitas vezes, dada a natureza da criança, e porque inicialmente ela só percebe as sensações de prazer e dor, ela repete os mesmos erros por falta de hábito, por falta de experiência. No entanto, porque dotada de razão, depois de sentir os resultados das suas más experiências, as ‘más sensações’ que experimenta deixam de fazer parte do desconhecido porque a sua consciência, ajudada pela memória, a despertou, a ajudou a tirar conclusões e, então, ela desiste das opções que a levam ao que é ‘mau’. Da mesma forma actua com as coisas que lhe são agradáveis, mas com a diferença de que se apercebe, também pela memória, que ‘pode’ voltar a repeti-las: “Assim que adquirimos…a consciência das nossas sensações, estamos dispostos a procurar ou a evitar os objectos que as produzem, em primeiro lugar conforme elas sejam agradáveis ou desagradáveis, depois, conforme a conveniência ou inconveniência que encontramos entre nós e esses objectos, e, enfim, conforme os juízos que fazemos sobre a ideia de felicidade ou de perfeição que a razão nos dá. |…| à medida que nos tornamos mais sensíveis e mais esclarecidos; forçadas por nossos hábitos, elas se alteram… segundo as nossas opiniões. ”[18]. À medida que a criança cresce, a sua sensibilidade e os hábitos que gradualmente vai adquirindo, ajudam-na a tomar consciência daquilo que a beneficia ou prejudica. Também pelo hábito, mas da observação, se apercebe que ‘os outros’ também estão ‘presos’ a hábitos e opiniões. Enfim, começa a ter consciência de pluralidade, consciência de que não vive só, consciência da ordem do tudo e da ordem da parte. Este despertar para o mundo dos homens, desperta-lhe também o amor de si que, não sendo orientado correctamente, poder-se-á transformar em amor-próprio. E eis que se inicia uma nova ordem na vida do jovem: a ordem moral. Chega o momento da consciencialização dos sentimentos, das paixões que instintivamente são despertadas pelo hábito de olhar o outro e o mundo. Contudo, se o jovem despertar para o mundo livremente e sem autoritarismos, mais fácil (e mais saudável) se torna a sua orientação para uma tomada de consciência de si e dos outros, e sentir-se-á mais confiante e seguro sabendo que tem a capacidade de pensar ‘por si’. A autoridade só lhe trará insegurança e amor-próprio ferido (que normalmente resulta em frustrações e maldade).

Apercebemo-nos também que Rousseau tem um método de educação: retardar o crescimento intelectual da criança com o intuito de uma aprendizagem natural e não forçada. É seu desejo que a criança cresça com o melhor hábito que poderá adquirir: o de não ter hábito nenhum[19].Portanto, crescer naturalmente. Rousseau dirige a criança de modo a que ela demonstre os seus próprios interesses e faça as suas próprias questões. O mestre deve educar o aluno para ser ‘um homem’ e para isso deverá usar as estruturas naturais do seu desenvolvimento, num ambiente muito bem controlado e, ao mesmo tempo, mantendo em mente o contexto social do qual o aluno irá fazer parte. Mas tudo tem o seu devido tempo: “Ensinai-lhe primeiro o que são as coisas em si mesmas e ensinareis depois o que são a nossos olhos; é assim que ele será capaz de comparar a opinião à verdade…”[20]. É primordial que o jovem aprenda a ‘pensar por si’, a ter consciência dos conceitos opinião e não-opinião, ou seja, ter noção daquilo que pode ser ‘a sua’ verdade “…para bem formar os seus juízos”[21] . A valorização do conceito de subjectividade, e o respeito por ela, é bem evidente no método de educação rousseauneano. Se os nossos males morais advêm todos da opinião (excepto o crime)[22], então o jovem quando educado com liberdade de escolha, fará uso dessa liberdade mais consciente de quais serão as possíveis consequências da sua escolha e que esses resultados poderão até ser negativos, contudo, advêm da sua escolha e não de opiniões que lhe são exteriores. Seja qual for o efeito da sua escolha, a causa é-lhe sempre familiar e porque, ainda que se sinta perdido, ele tem a consciência de que a ilusão é a sua ilusão, e aprenderá com ela: “…consultemos a luz interior, desorientar-me-á menos do que eles me desorientam, ou, pelo menos, meu erro será meu e perverter-me-ei menos seguindo minhas ilusões do que me entregando às suas mentiras.”[23]. A constatação da verdade deste conteúdo, sabemo-la por experiência própria. No caminho que por mim é escolhido, a minha consciência terá depois o seu papel: se for o caminho correcto, ela segredar-me-á um bem-estar que me traz a felicidade; se for o caminho errado, como diz Rousseau, ela - a minha consciência - “…ergue-se e protesta contra o seu autor; grita-lhe entre gemidos: Enganaste-me!”[24]. Contudo, futuramente a memória desses ‘gemidos’, ajudar-me-ão a corrigir os erros. De um ‘modo cartesiano’ Rousseau diria que existimos e temos sentidos pelos quais somos afectados[25]. Ou seja, existimos, temos sensações e a capacidade de ser seres dotados de juízo que nos ajuda a discernir, a julgar e a comparar, como tal temos a possibilidade, única no reino animal, de agir com consciência da realidade que nos rodeia. Toda a moralidade das nossas acções está no juízo que nós próprios fazemos dessas acções. É a nossa consciência moral que ‘classifica’ a moralidade das nossas determinações. Assim, nós só conseguimos fazer juízos das coisas quando as experienciamos. Entretanto, enquanto não temos o ‘sabor’ da experiência própria, tudo não passa de teorias, de opiniões. Portanto, de nada serve os alertas do mestre ou dos que estão mais próximos do educando, pois a moralidade está nele, está nos juízos que por ele são feitos. O ser humano tem o privilégio de poder reflectir ponderadamente antes de realizar e se assim é, então que seja dada a oportunidade de fazer uso dessas capacidades. Ter consciência de si, poder fazer juízos sobre o que se sente, é sinónimo de que se é autónomo: “…a minha liberdade consiste justamente no facto de eu sozinho poder querer o que é conveniente para mim, ou que considero como tal, sem que nada de alheio a mim me determine.”[26]. São infindáveis as vezes que ouvimos os ‘mais velhos’ dizer: ‘o resultado das tuas acções, sobre ti recairão. Se fizeres o bem, colhes o bem; se fizeres o mal, colhes o mal, e és tu e apenas tu que sofre ou não as consequências daquilo que escolheste, sejam elas boas ou más’. Aliás, este pensamento está de acordo com o que Rousseau diz:”O mal que o homem faz retorna a ele sem nada mudar no sistema do mundo, sem impedir que a própria espécie humana se conserve, apesar de tudo.”[27]. Portanto, neste ponto, Rousseau não podia ser mais contemporâneo. E este é um ponto assente em todas as épocas. Somos seres humanos e temos a capacidade de pensar, temos consciência das nossas acções, então devemos fazer ‘bom uso’ dessa consciência. Ela é a voz secreta da alma, a voz que aprova ou reprova as nossas acções, é o ‘travão’ das nossas paixões. “Somos tentados pelas paixões e contidos pela consciência”[28].

Na sequência deste pensamento, constatamos que o homem tem um atributo muito especial: a razão, que engendra o amor-próprio, mas é reflectindo conscientemente que o fortificamos; é a consciência que faz o homem cair em si; é ela que o separa de tudo que o incomoda e aflige[29]; é ela que dá ao homem a possibilidade de conhecer e julgar a sua própria realidade. Portanto, há que saber ouvir atentamente a voz que nos orienta. Assim, seja qual for a orientação que tomamos, ela é sempre da nossa exclusiva responsabilidade, já que a consciência que me guia é a ‘minha’ consciência. É certo que por vezes há causas de força maior que nos levam a agir irracionalmente, mas também sabemos que, ao agirmos, temos consequências que produzem efeitos e que estes podem ser positivos ou negativos, tanto faz, pois nós temos consciência de que é o bom uso ou o abuso das nossas faculdades que faz com que sejamos bem sucedidos ou mal sucedidos, que sejamos suficientemente felizes ou infelizes. Por muito que o educador insista, as atitudes são sempre tomadas segundo aquilo que me diz a voz de mim para mim. Para além do mais, repetindo a máxima de Plutarco que Rousseau usa “não é na liça que os vencedores dos jogos sagrados são coroados, mas depois de terem passado por ela”[30]. Muitas vezes nós temos consciência de que as nossas escolhas nem sempre são as mais correctas, mas só podemos tirar conclusões depois de as experienciar. Então, insistindo na questão, será que a moralidade dos nossos actos resultam mesmo da educação? Ou seja, será que as nossas boas ou más acções resultam mesmo de uma boa educação ou de uma má educação? Tal como já foi referido, tudo o que temos ao nascer e de que precisamos quando grandes nos é dado pela educação, sendo assim a educação é realmente necessária na sociedade civil. Rousseau afirma, ‘platonicamente’, que para o progresso moral da humanidade é indispensável uma Paideia, uma educação, pois esta é a única forma de chegar a uma sociedade justa. Mas será que essa educação nos ensina a ‘consciencializar melhor’ isto ou aquilo? - Ora, conforme também já se referiu, se para Rousseau o homem é naturalmente bom, então, quando bem orientado, ele poderá usar o dom ‘sublime’ da consciência para fazer ‘bom uso’ dessa bondade natural. Assim sendo, e conforme já se constatou, a consciência é um dom de inato no ser humano, algo que ‘nasce e cresce comigo’mas que precisa de ser ‘moldado’, e de preferência, ‘bem moldado’.A ausência de consciência é um acontecimento impossível de realizar, pois ela é um dom natural dos seres humanos (talvez esta ‘ausência’ só aconteça nos seres humanos que têm a infelicidade de nascer com ela, já que é um dom inato, mas que nunca poderão usufrui desse dom). O homem ‘normal’, pode até agir arrebatamente e nem ter a oportunidade de se consciencializar nos seus actos, no entanto, depois da acção terá sempre conhecimento deles. Contudo, os actos já foram realizados e, muitas são as vezes que, ao reflectir e tomar consciência dos actos praticados, o homem sofre e fica infeliz, pois não ‘era aquilo que pretendia fazer’, ou ‘não fez com intenção’, ou ainda ‘agiu sem consciência’. Posto isto, se o mal é reconhecido como tal mas foi praticado inconscientemente, então de onde surge o mal? Regressando de novo ao que já se referiu anteriormente, para Rousseau o mal está, efectivamente, no meio social em que o ser humano vive. O sujeito ao qual se deve realmente imputar o mal é à sociedade, é nela que reside a origem do mal. Mas, então, se a criança for criada e educada longe da sociedade, como poderá ela ser preparada para enfrentar os males que nela existem se esteve afastada deles? Bom, parece que o problema é circular. Quer dizer, voltamos ao ponto de partida: sendo a consciência um guia, ela guiar-nos-á naturalmente e recusará as regras sociais, i.é., as leis dos homens. Mediante a lembrança do que se aprendeu e pela experiência que se adquiriu, a consciência ditará instintivamente o rumo a seguir. A consciência é obstinada e ‘agarra-se’ firmemente e de uma forma duradoura às ideias. O poder de insistência da consciência na maneira de agir, revela-se de uma vontade inabalável e há que saber fazer uso dessa vontade. Então, pergunta-se: Sendo a consciência tão ‘teimosa’, não poderá ela ultrapassar obstinadamente todo e qualquer cuidado prévio que se teve com a educação do homem? Rousseau diz: “…a consciência nunca se engana. Ela é o verdadeiro guia do homem; ela está para a alma assim como o instinto está para o corpo: quem a segue obedece à natureza e não tem medo de se perder. Esta última afirmação de Rousseau, o ‘não ter medo de se perder’, parece ter uma dupla extensão, i.é., pode nos levar por dois caminhos. Ou seja, o ser humano pode ‘não ter medo de se perder’ seja em que situação for: para o mal ou para o bem! Se, no momento, a voz da consciência me impulsiona para o bem, eu sigo para o bem, mas se me impulsiona para o mal, eu sigo para o mal. Não obstante, a opção que se segue é sempre uma opção que se tomou com consciência. Os resultados ‘pesarão’ ou não, conforme a consciência que cada um tem de mal ou de bem. A ‘voz importuna’ sempre nos acompanhará, no entanto, é incerto que tal impertinência nos impeça de agir mal. Insistentemente, a solução que Rousseau dá para uma melhor opção entre estes dois caminhos, está realmente no espírito das regras da educação, ou melhor, na liberdade que se deu ao jovem na sua educação enquanto criança: “O espírito das regras é dar às crianças mais liberdade e menos domínio, deixar que façam mais por si mesmas e exijam menos dos outros. Assim, acostumando-se cedo a limitar os seus desejos às suas forças, pouco sentirão a privação do que não estiver em seu poder”[31]. Contudo, a experiência diz-nos que aqui há muito espaço para a falibilidade, pois nem sempre isto é verdade. Nem mesmo a ‘vontade de’ é solução, já que esta pode ser tanto a vontade de praticar o bem quanto a vontade de praticar o mal.

Mediante tal plêiade de dúvidas que nos guiam sempre às mesmas respostas, afirmando e reafirmando uma circularidade sem fim, se Rousseau não se tivesse afirmado como defensor de ‘ideias simples’, poder-nos-íamos atrever a dizer, pelo menos tendo em conta o tipo de sociedade em vivemos actualmente[32], que Rousseau nos leva a uma espécie de ‘jargão da metafísica’, ou seja, aquilo a que ele chama o mundo da ‘filosofia dos absurdos’[33] e jamais à realidade. Isto porque se nos atrevermos a sair do raciocínio do filósofo, somos levados a questões que, inevitavelmente, nos transportarão ou para o mundo da metafísica, o mundo das respostas abstractas, ou então ficamos sem respostas. Por outro lado, pode-se também pôr a hipótese da existência de consciências ‘inatamente doentes’, ou seja, mentes que são incapazes de fazer uso da consciência sabendo que se fizerem uso dela poderão seguir um caminho melhor, e isto independentemente do ambiente em que são criadas e educadas. Consciências que por muito que se ‘autotorturem’, nunca conseguem ultrapassar as barreiras do mal dos seus donos. Será que mesmo assim, a sociedade pode ser imputada pelo mal que fazem? Ou seremos apenas nos resta concluir que estas são ‘consciências doentes’? Esta é uma das situações em que uma explicação sob o jugo da realidade é deveras difícil de explicar. No entanto, se queremos continuar no mundo real, com circularidade de respostas ou não, a única explicação a dar poderá mesmo ser aquela a que socialmente chamamos de ‘mentes doentes’, já que se recorrermos a uma ‘resposta divina’, entraremos então no jugo da abstracção. Se recorrermos a uma resposta de forma kanteana, poder-se-á também dizer que o mal é fruto da inclinação sensível, da patologia. Ou seja, a natureza humana é naturalmente patológica e sofre de um mal radical (no sentido grego do termo) e a lei prática funda-se a partir do momento em que o homem vence as suas inclinações, no entanto, elas são sempre inclinações e estão sempre presentes.

Dando seguimento ainda ao problema do mal, que é sempre um problema que questiona a existência de ‘boas consciências’, Rousseau tem uma opinião muito realista, clara e decisiva. Ele diz, no Contrato Social, que se lhe perguntarem se o homem ganha alguma coisa a praticar o bem, ele responderá: muito pelo contrário. Mas se lhe perguntarem se o homem ganha muito mais em praticar o mal, Rousseau dirá que sim, que o homem ganha muito mais em praticar o mal. A realidade é esta e aqui poderá surgir também uma dedução lógica acerca do domínio da consciência: se o homem sabe, portanto, se tem consciência, que perde na prática do mal, certamente que terá consciência dos resultados. Ele tem consciência de que a virtude não se coaduna com a realização dos bens materiais tanto quanto se coaduna com prática o mal. Então, ainda que o homem tenha consciência desta situação poderá continuar a imputar a origem do mal à sociedade? Voltamos ao esquema de circularidade. Tal como já foi referido, segundo a perspectiva de Rousseau, independentemente de o homem saber que poderá vir a ser importunado pela voz da consciência, o mal que pratica é fruto da vida civil, pois se ele vivesse no estado natural, não teria consciência de mal ou de bem.

Assim, um facto é certo e é necessário tê-lo em conta: Rousseau atribui sempre a capacidade do mal à sociedade. E ainda que a possibilidade de isolamento, para a educação da criança, sugerida por Rousseau nos pareça algo de impossível de realizar nos dias de hoje, é necessário não esquecer que esta proposta significa uma escolha metodológica que faz parte de um percurso intelectual que este filósofo coerentemente procurou manter, ou seja, a ideia de que o homem natural não pode ser confundido com o homem civilizado.

 

 

3.  PALAVRAS FINAIS

 

O discurso que actualmente se faz dos bons velhos tempos é uma forma de crítica nostálgica das diversas circunstâncias da realidade educacional e da moralidade contemporâneas. A realidade que Rousseau viveu, foi uma realidade diferente da nossa. Não obstante, as directrizes básicas são sempre as mesmas: procuramos o melhor ambiente para educar as nossas crianças.

O contexto plural é hoje uma realidade tal como o era na época de Rousseau, mas com uma extensão muito maior. Portanto, supondo que no século XVIII a fuga do ambiente social agitado poderia até contribuir para uma educação da criança mais cuidada, mas actualmente pouco adianta ‘chorar’ os cânones perdidos, pois a realidade de hoje é radicalmente diferente.

No campo da educação moral, a questão não é só transmitir às crianças e aos jovens um determinado conjunto de normas e valores, que são deduzidos dos axiomas básicos de teorias éticas gerais que se afirmam superiores a todas as outras, pois não passam disso mesmo ‘teorias éticas’. A educação moral tem que ser mais do que isso, dado que a linearidade e a não diferenciação, levam ao insucesso. Na educação, em qualquer das suas dimensões, incluindo a dimensão ética, não há espaço para a implementação autoritária de verdades, normas ou expectativas. E aqui vamos explicitamente ao encontro dos ideais de Rousseau, apesar de nos afastarmos da sua época quase três centenas de anos. Qualquer tipo de repressão e autoritarismo leva o homem à alienação. Cada época vive consoante e conforme os princípios e valores a ela inerentes e, em cada uma dessas épocas vive-se sob determinados cânones que nunca são compatíveis com o desejado, porque o homem civil é eternamente um ser insatisfeito.

 Se Rousseau criticava o excesso de corrupção social e de ‘zelo teológico’ na educação da criança e o esquecimento dos seus direitos, hoje vivemos numa época em que, para além da corrupção social persistir e por muitas vezes se esquecer os direitos da criança, os princípios ‘a-históricos’ da tradição metafísico-teológica perderam o seu poder de convicção, abrindo portas ao histórico, à invenção, à busca inquieta e ininterrupta que os homens fazem no mundo, ao mundo e aos outros. Realmente, os excessos nunca dão resultados positivos. Se na época de Rousseau a criança era iludida com uma educação premiada pelos tabus criados, pela sociedade e pela igreja, aos seus pais que, por sua vez, por conveniência ou por preconceito se deixavam alienar, alienando depois os seus filhos; na actualidade, os excessos são outros mas os resultados por eles provocados são também eles negativos. Entretanto, se a evolução das novas tecnologias nos trouxeram mais facilidades em determinados aspectos, também nos trouxeram maiores perigos noutros aspectos. O avança tecnológico do século XX trouxe à sociedade preocupações redobradas em relação à educação das nossas crianças já que, nos dias de hoje, é praticamente impossível pensar num isolamento semelhante àquele que Rousseau propõe (se é que o isolamento resultava mesmo nessa época). Basta pensar que, mesmo nas povoações mais isoladas, há sempre a possibilidade de ‘mostrar o mundo’ às crianças de uma forma errada e violenta (tal como já fo i mencionado, basta pensarmos no  grande meio  de comunicação como o é o da televisão). Não obstante, uma coisa não mudou: o espaço da educação é a práxis, ainda falível, que se define pelo sucesso ou pela frustração. E até estes conceitos - sucesso e frustração - são também eles susceptíveis de gerar discordâncias, consoante os pontos de vista a partir dos quais são estabelecidos.

Rousseau viveu num mundo de repressões e perseguições e nós vivemos num mundo de incertezas que, inevitavelmente, temos e precisamos de saber conviver com elas. E infelizmente é algo que também tem que fazer parte da educação das crianças e dos jovens da nossa era. Eles precisam de se consciencializar nas incertezas para que saibam contorná-las em qualquer momento. A aprendizagem tem um sentido de preparação para as acções concretas, pois tem que ter o sentido da realidade, ter em conta os factos, as circunstâncias e não a transcrição mecânica de valores ou normas gerais. O agir correctamente é o resultado de um projecto de aprendizagem, uma tarefa que resulta da educação e não o resultado de ‘prescrições comerciáveis’ para transferir para o educando. Portanto, a educação não pode gerar nos educandos um conjunto acabado de virtudes direccionadas para a justiça, para a solidariedade ou para o respeito pelo próximo e por tudo aquilo que o rodeia. Ou seja, não é pela educação que nos tornamos pessoas justas. A educação pode abrir ao educando o mundo do agir moral através de processos pedagógicos, que o ajudem a reflectir e a comunicar sobre proposições morais inerentes ao ambiente social e cultural em que se vive. No entanto, isto não quer dizer que as tentativas de introdução dos educandos no ‘mundo moral’ e a sua familiarização com as expectativas de comportamento culturalmente estabelecidas por esse mundo, sejam sinónimo de conformidade com esses comportamentos, pois sabemos de antemão que um facto é aquilo que o mundo moral ‘reza’, e outro facto é a realidade concreta. Ou seja, a educação não tem como garantir resultados, pois a acção e o comportamento concretos realizam-se no contexto de várias circunstâncias e determinações. As crianças podem ser introduzidas no mundo moral mas os seus comportamentos não podem de modo algum ser predefinidos. A educação moral tem regras com conteúdos precários que são moldados num mundo de circunstâncias, mas à luz de normas éticas mais gerais e estas normas não têm qualquer especificação de validade mas insinuam a necessidade de como, em determinadas circunstâncias, as devemos viver ou mesmo transgredir mediante justificação (recordo, por exemplo, o caso da ‘nobre mentira’ de Sócrates). E todos nós temos consciência de que é realmente assim. Portanto, há que ter em conta que a educação moral não serve para que as crianças e jovens ‘internem’nas suas mentes normas supostamente correctas, mas sim para que aprendam e tenham consciência de que, em circunstâncias concretas, essas normas são necessárias para salvaguardar os princípios mínimos da vida em comum, tal como o respeito pela vida, pela dignidade do outro e pelo meio ambiente.

Parece que a nossa contemporaneidade está, também neste ponto, em sintonia com a contemporaneidade de Rousseau se recordarmos que, no Emílio, este autor diz:”O nosso verdadeiro estudo é o da condição humana. Aquele de nós que melhor souber suportar os bens e os males desta vida é, para mim, o mais bem educado; donde se segue que a verdadeira educação consiste menos em preceitos do que em exercícios”[34].

Pode até ser verdade que, como queria Rousseau, a vida da criança tenha o sentido em si, mas, tal como Rousseau destaca, também é verdade que esse sentido advém sempre da interacção entre a criança e o meio. Então, se assim é (e nós temos experiências que nos consciencializam disso), isto significa que o sentido da educação arrasta sempre consigo a instabilidade. E o mesmo acontece com a nossa consciência, que embora seja inata, será também arrastada pela mesma instabilidade. No entanto, a falta de certezas é uma realidade que tem que ser assumida pela educação, o que não acontece com a existência de consciência em cada um de nós. Ela é um facto (no homem ‘normal’) e talvez seja a forma inata que cada um de nós tem para poder ultrapassar essas incertezas e falibilidades da educação. Basta saber fazer uso da memória das experiências passadas, pois a consciência dá ao ser humano a oportunidade de fazer uso dessa memória para poder gerir os conflitos que possam surgir na educação moral. Fala-se aqui em ‘conflitos’ porque, contracensualmente, parece que o conflito é a parte positiva da estratégia da praxis humana, já que é na perspectiva desses conflitos e contradições, inerentes à própria realidade, que se abre a possibilidade da construção de um novo telos na vida de cada um de nós e na sociedade humana.

A única conclusão que talvez se poderá apresentar aqui é que, apesar de todas as contrariedades relacionadas com a sua vida privada, é facto que as ideias de Rousseau são de tal forma profundas que influenciaram, também profundamente, o espírito da sociedade não só da sua época como o de sociedades de épocas vindouras.

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

Obra de Consulta Principal

·    Jean Jacques Rousseau, Emílio ou Da Educação, Edit. Martins Fontes, São Paulo, 2004

 

Obras de Apoio

·    Ernest Cassirer, Kant et Rousseau, in Rousseau, Kant, Goethe, Deux Essais, Traduit et presenté pour Jean Lacoste, Ed. Balin.

·    Jean Jacques Rousseau, Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, Versão Electrónica Portuguesa apresentada por Nelson J. Gracia no site:  www.ateus.net/ebooks/index.php de 11/10/2001

·    Laurence D. Cooper, Rousseau, Nature, and the Problem of the Good Life, The Pennsylvania State University Press, Pennsylvania

·    Vários Autores, Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das  Ciências d Lisboa, Editorial Verbo e Academia das Ciências de Lisboa, 2001


 

[1] O contexto ‘rousseauneano’ em que se envolve este trabalho está dentro de um conjunto de circunstâncias que tecem  um facto: o homem natural vivendo na sociedade civil.

[2] Jean Jacques Rousseau, Emílio ou Da Educação, Edit. Martins Fontes, São Paulo, 2004, pg. 9

[3] Cf. Ernest Cassirer, Kant et Rousseau, in  Rousseau, Kant, Goethe, Deux Essais,  Traduit et presenté  pour Jean Lacoste, Ed. Balin, pg.50.

[4] Ibid.

[5] Op.Cit., Livro IV (Profissão de Fé do Vigário Saboiano), pg. 404

[6] Op.Cit., pg. 373

[7] Op.Cit., Livro IV, pg. 302

[8] Op. Cit. Livro IV, pg. 450

[9] Vários Autores, Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências d Lisboa, Editorial Verbo e Academia das Ciências de Lisboa, 2001, pg.928

[10]  Cf. Laurence D. Cooper, Rousseau, Nature, and the Problem of the Good Life, The Pennsylvania State University Press, Pennsylvania, pg. 81

[11]  Op. Cit., Livro IV (Profissão de Fé do Vigário Saboiano), pg. 412

[12]  Op. Cit., pg. 405

[13]  Op. Cit., pg. 404

[14]  Op. Cit., pg. 412

[15] Cf. Op. Cit., Livro I, pg.68

[16] Cf. Op. Cit. pg. 8

[17]Op. Cit., pg. 10

[18] Ibidem.

[19] Cf. Op. Cit., Livro II, pg. 49

[20] Op. Cit., Livro III, pg. 248

[21] Ibidem. O sublinhado nas palavras ‘os seus’ é de minha autoria

[22] Cf. Op. Cit., Livro II, pg. 77

[23] Op. Cit., Livro IV, pg. 377

[24] Op.Cit., pg. 399

[25] Cf.Op. Cit., pgs. 378-379. Rousseau segue o pensamento de Descartes, no entanto, com uma diferença destacável: Rousseau renuncia ao primado do ‘cogito’, já que todas as ideias provêm das sensações. Ainda que esta seja uma tese empirista, Rousseau é um racionalista e cartesiano já que retoma a ideia de que é no juízo que se concentra toda a essência humana. Ou seja, toda a moralidade das acções do homem está  no juízo. O mesmo será dizer que qualquer juízo, bom ou mau, tomado pelo homem, advém única e exclusivamente do símbolo da sua autonomia: do juízo. É o juízo que nos dá a capacidade intelectual de comparar, de julgar, de discernir conscientemente as coisas.

[26] Op. Cit., Livro IV, pg.396

[27] Ibidem

[28] Op. Cit., Livro IV, pg. 397

[29] Jean Jacques Rousseau, Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, Versão Electrónica Portuguesa apresentada por Nelson J. Gracia, site www.ateus.net/ebooks/index.php de 11/10/2001, pg. 25

[30] Cf. Op. Cit.,(Emílio), Livro IV, pg. 399

[31] Op. Cit., Livro I, pg.58

[32] Destaco a frase porque julgo que o ‘isolamento da criança’ que Rousseau nos sugere para a sua educação, se no século XVIII aparentemente poderia ser possível, hoje, em pleno séc. XXI, é praticamente impossivel pensar em tal método. Basta pensarmos, por exemplo, na televisão. Por muito ‘isolada’ que a criança viva das grandes cidades, ou mesmo de vilas e aldeias, esse isolamento jamais será uma realidade idêntica àquela que se vivia na época de Rousseau. No entanto, há que também ter em conta o carácter hipotético que Rousseau deu à sua ‘alternativa pedagógica’.

[33] Cf. Op.Cit., pg. 385. Rousseau mais uma vez nos dá um ponto de vista racional mas também da ordem empirista, já que recusa absolutamente os ideias gerais e abstractas, ‘os absurdos’ sem realidade à vista.

[34] Op.Cit. Livro I, pg. 15

 

Maria Inês Dourado

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