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Trabalho escolar sobre o conto "Fronteira" de Miguel Torga, realizado no âmbito da disciplina de História (11º ano).
Quando a noite desce e sepulta dentro do manto o perfil austero do castelo de Fuentes, Fronteira desperta.
Range primeiro a porta do Valentim, e sai por ela, magro, fechado numa roupa negra de bombazina, um vulto que se perde cinco ou seis passos depois.
A seguir, aponta à escuridão o nariz afilado do Sabino. Parece um rato a surgir do buraco. Fareja, fareja, hesita, bate as pestanas meia dúzia de vezes a acostumar-se às trevas, e corre docemente a fechadura do cortelho.
O Rala, de braço bambo da navalhada que o D. José, em Lovios, lhe mandou à traição, dá sempre uma resposta torta à mãe, quando já no quinteiro ela lhe recomenda não sei quê lá de dentro.
O Salta, que parece anão, esgueira-se pelos fundos da casa, chega ao cruzeiro, benze-se, e ninguém lhe põe mais a vista em cima.
A Isabel, sempre com aquele ar de quem vai lavar os cueiros de um filho, sai quando o relógio de Fuentes, longe e soturnamente, bate as onze. Aparece no patamar como se nada fosse, toma altura às estrelas, se as há, e some-se na negrura como os outros.
O Júlio Moinante, esse levanta o gravelho, abre, senta-se num degrau da casa, acomoda o coto da perna da melhor maneira que pode, e fica horas a fio a seguir na escuridão o destino de um que lhe dói. Era o rei de Fronteira. Morto o Faustino nas Pedras Ninhas, herdou-lhe o guião. Mas um dia o Penca agarrou-o com a boca na botija, e foi só uma perna varada e as tripas do macho à mostra. Quando, naquele estado, entraram ambos em Fronteira, ele e o animal, parecia que o mundo se ia acabar ali. Mas tinha o filho, o João. E agora, enquanto o rapaz, como os mais, se perde nos caminhos da noite, vai-lhe seguindo os passos da soleira da porta.
Saem outros, ainda. Devagar, pelas horas a cabo, os que parece terem-se esquecido, vão deslizando da toca. Só mesmo quando não existe mais corpo adulto e válido no povo é que Fronteira sossega.
Coisa estranha: esta rarefacção que se faz na aldeia, longe de a esvaziar, enche-a. A terra veste-se de um sentido novo, assim deserta, à espera. Pequenina, de casas iguais e rudimentares, escondida do mundo nas dobras angustiadas e ossudas de uma capucha de granito, as horas que medeiam entre o seu coração e Fuentes são tão fundas e carregadas que quase magoam. Quem regressará primeiro?
Noventa vezes em cada cem, é a Isabel. Aquilo são pés de veludo! Mas às vezes é o Sabino. Sempre de nariz no ar, a bater as pestanas contra a luz da candeia, entra em casa alagado em água e com um bafo tal a aguardente que tomba.
– Arruma!
A mulher nem suspira. Pega no saco, mete-o debaixo da cama, e põe-se a lançar o caldo. Por fim, começa:
– O Valentim?
– Chumbo. Já passou.
– O Rala?
– Uma caixa de conhaque. Vem por Fomos.
– O Salta?
– Foi a Tomeros. Volta amanhã.
– A Isabel?
– Seda. Ao sair do Padilha parecia um bombo.
E enquanto a maçã de Adão sobe e desce no pescoço comprido do Sabino, e a malga de caldo se esvazia, das respostas que dá e do mágico ventre da noite, diante do olhar angustiado da Joana e de Fronteira, vão surgindo os que faltam ainda: o João, o Félix e o Maximino.
Quando algum não regressa, e por lá fica varado pela bala de uma lei que Fronteira não pode compreender, o coração da aldeia estremece, mas não hesita. Desde que o mundo é mundo que toda agente ali governa a vida na lavoura que a terra permite. E, com luto na alma ou no casaco, mal a noite escurece, continua a faina. A vida está acima das desgraças e dos códigos. De mais, diante da fatalidade a que a povoação está condenada, a própria guarda acaba por descrer da sua missão hirta e fria na escuridão das horas. E se por acaso se juntam na venda do Inácio uns e outros – guardas e contrabandistas – , fala-se honradamente da melhor maneira de ganhar o pão: se por conta do Estado a vigiar o ribeiro, se por conta da Vida a passar o ribeiro.
De longe em longe, porém, quando há transferências ou rendições, e aparecem caras e consciências novas, são precisos alguns dias para se chegar a essa perfeição de entendimento entre as duas forças. O que vem teima, o que está teima, e parece aço a bater em pederneira. Mas tudo acaba em paz.
Desses saltos no quotidiano de Fronteira, o pior foi o que se deu com a vinda do Robalo.
Já lá vão anos. O rapaz era do Minho, acostumado ao positivismo da sua terra: um lameiro, uma junta de bois, uma videira de enforcado, o Abade muito vermelho à varanda da residência, e o Senhor pela Páscoa. Além disso, novo no ofício – na guarda, para onde entrara em nome dessa mesma terrosa realidade: um ordenado certo e a reforma por inteiro. Daí que lhe parecesse o chão de Fronteira movediço sob os pés. Mal chegou e se foi apresentar ao posto, deu uma volta pelo povoado. E aquelas casas na extrema pureza de uma toca humana, e aqueles seres deitados ao sol como esquecidos da vida, transtornaram-lhe o entendimento.
– Esta gente que faz? – perguntou a um companheiro já maduro no ofício.
– Contrabando.
– Contrabando!? Todos!? E as terras, a agricultura?
– Terras!? Estas penedias.
O Robalo queria falar de qualquer veiga possível, de qualquer chã que não vira ainda, mas tinha forçosamente de existir, pois que na sua ideia um povo não podia viver senão de hortas e lameiros. Insistiu por isso na estranheza. Mas o outro lavou dali as mãos:
– Não. Aqui, a terra, ao todo, ao todo, produz a bica de água da fonte. O resto vão-no buscar a Fuentes.
Mas nem assim o Robalo entendeu Fronteira e o seu destino. No dia seguinte, pelo ribeiro fora, parecia um cão a guardar. Que o dever acima de tudo, que mais isto, que mais aquilo – sítio que rondasse era sítio excomungado. Até as ervas falavam quando qualquer as pisava de saco às costas. Mal a sua ladradela de mastim zeloso se ouvia, ou se parava logo ou nem Deus do céu valia a um cristão. Em quinze dias foram dois tiros no peito do Fagundes, um par de coronhadas no Albino, e ao Gaspar teve-o mesmo por um triz. Se não dá um torcegão no pé quando apontava, varava a cabeça do infeliz de lado a lado. A bala passou-lhe a menos de meio palmo das fontes.
Mas Fronteira tinha de vencer. Primeiro, porque o coração dos homens, por mais duro que seja, tem sempre um ponto fraco por onde lhe entra a ternura; segundo, porque o Diabo põe e Deus dispõe.
Foi assim:
Apesar de inconvivente e mazombo, um domingo em que havia festa em Fronteira, o Robalo, que estava de folga, não resistiu: chegou-se aos bons. E quem havia de lhe entrar pelos olhos dentro ao natural, cobertinha da luz doirada do sol? A Isabel! A rapariga tirava a respiração a um mortal. Vinte e dois anos que nem vinte e dois dias de S. João. Cada braço, cada perna, cada seio, que era de a gente se lamber. Ora como ele andava também na mesma conta de primaveras, e não era de pedra, o lume pegou-se à estopa. De tal sorte, que, quando o dia acabou, o Robalo, não parecia o mesmo. Evaporara-se-lhe o ar de salvador do mundo, e até já via Fronteira doutro jeito. Se não fosse aquele maldito instinto de castro-laboreiro... Tempos depois, apesar de os amores com a Isabel irem de vento em popa, cama e tudo, ainda o ladrão se lhe sai com esta:
– Gosto muito de ti, tudo o mais, mas se te encontro a passar carga e não paras, atiro como a outro qualquer.
A Isabel riu-se.
– Palavra?!
– Palavra.
– A mim?!!!
– A minha mãe, que fosse...
Desprenderam-se dos braços um do outro melancolicamente. E quando no dia seguinte o Robalo voltou ao ninho tinha a porta fechada.
Como a vida em Fronteira é de noite que se vive, e o Robalo era todo senhor do seu nariz, puderam decorrer meses sem o rapaz pôr os olhos sequer na rapariga. Ela passava o ribeiro como podia, e ele guardava o ribeiro como podia.
Fronteira olhava.
E até ao Natal a vida foi deslizando assim.
Na noite de Consoada, porém, aconteceu o que já se esperava. Parte da guarnição tinha ido de licença. Todos se chegavam ao calor da lareira familiar, saudosos de paz e harmonia. Mas o Robalo ficara firme no seu posto.
Nevava. Um frio tal que o próprio bafo gelava mal saía da boca. Visto de dentro da capa de oleado, o mundo parecia uma coisa irreal, alva, inefável como um sonho. O céu estava ainda mais silencioso e mais alto que de costume. E qualquer parte do Robalo, sem ele querer, diluía-se na magia que enluarava tudo. No Minho, numa noite assim... Pena a Isabel ter-lhe saído contrabandista... Tê-la encontrado numa terra daquelas... Senão, mais tarde, quando tivesse a reforma... Até mesmo agora...
Comovido, deixou-se perder por momentos na vaga mansidão da brancura.
Mas, como por detrás do homem o guarda continuava alerta, mal acabava de pisar aquele caminho sem pedras, já o seu ouvido de cão da noite lhe trazia à consciência um rumor de passos só pressentidos.
Acordou inteiro.
Tchap, tchap, tchap... Pela neve fora, da outra banda, aproximava-se alguém.
Quem diabo seria? O Carrapito? O Carrapito, não. Olha o Carrapito meter-se a um nevão daqueles! O Samuel? O Samuel também não. Era mais atarracado. Só se fosse o Gregório... Sim, porque o Cristóvão, que tinha o mesmo corpo, estava em Vila Seca, no namoro. Vira-o passar...
A pessoa que vinha, caminhava sempre, direita como um fuso ao cano da carabina.
Tchap... Tchap...
Todo gelado por fora, mas quente da emoção que lhe dava sempre qualquer alma em direcção ao ribeiro, o Robalo esperou. E, quando os passos se molharam no rego de água e chegaram à margem, a mola tensa estalou:
- Alto!
Mas o gume da palavra de comando não conseguiu cortar sequer os flocos de neve. A sensação que teve ao gritar foi a de um baque amortecido. Uma espécie de tiro à queima-roupa.
Repetiu:
– Alto!
Uma voz cansada entrou-lhe no coração.
– Sou eu...
– Tu?!
– Sou. Mas nem trago contrabando, nem me posso demorar.
– Tu?!
– Eu mesmo. E já disse que não trago contrabando, nem me posso demorar.
Se ele não fosse o Robalo, cego e frio dentro da função, o que lhe apetecia era tomar nos braços aquele corpo amado e rebelde, enfarinhado de neve e não sabia de que outra secreta alvura. Mas era o Robalo guarda, a guardar. Por isso fez arrefecer nas veias a fogueira que o escaldava e estacou o primeiro passo do vulto com nova ordem:
– Alto, já disse!
Docemente, numa carícia estranha para os seus ouvidos, quem passava falou:
– Não berres, que não vale a pena. Este volume todo – é gente. A intenção era boa, era... Mas de repente, em Fuentes, começam-me a apertar as dores... Se não me apego às pernas com quanta alma tinha, nascia-me o rapaz galego. Querias?
O coração do Robalo não aguentava tanto. Um filho! Um filho seu no ventre de uma contrabandista!
Regelou-se ainda mais.
– A mim não me enganas tu. Gente! No posto eu te direi se isso é gente, ou são cortes de seda. Vamos lá!
Pela neve fora a presença da rapariga era como um enigma sagrado diante dos olhos dele. Mas o guarda guardava.
– Ó homem de Deus, deixa-me ir enquanto posso! Olha que se as dores voltam como há bocado, é no sítio onde estiver...
O Robalo, porém, tinha de levar a cruz ao fim. Já com a Isabel fechada na pobreza da tarimba, esperou ainda o milagre de a sua obstinação acabar em tecidos, em seco e peco contrabando posto a nu.
Fronteira, contudo, podia mais do que uma absurda obstinação. E, mal a parturiente atirou lá de dentro o primeiro grito a valer, o Robalo ruiu.
Desesperado, parecia um doido por toda a casa. De quando em quando, arrastado por uma força que não conseguia dominar, chegava-se à porta do quarto, humilde, rasgado de cima abaixo de ternura:
– Isabel...
Um berro que estalava fino e súbito fazia-o recuar transido para o mais fundo da sala.
Até que a trovoada amainou e do pesado silêncio que se fez nasceu para os seus ouvidos maravilhados um choro doce, novo, muito puro, que lhe arrancou lágrimas dos olhos.
Chegou-se à porta outra vez:
– Isabel...
A voz cansada da mulher mandou-o entrar.
E, quando o dia rompeu, Fronteira tinha de todo ganho a partida. Demitido, o Robalo juntou-se com a rapariga. Ora como a lavoura de Fronteira não é outra, e a boca aperta, que remédio senão entrar na lei da terra! Contrabandista.
E aí começam ambos a trabalhar, ele em armas de fogo, que vai buscar a Vigo, e ela em cortes de seda, que esconde debaixo da camisa, enrolados à cinta, de tal maneira que já ninguém sabe ao certo quando atravessa o ribeiro, grávida a valer ou prenha de mercadoria.
Tendo em conta que a criação da narrativa de ficção tenta reproduzir (ou não) a realidade, exponha o seu ponto de vista pessoal sobre o contributo destes textos quer para aquisição de saberes, quer para entretenimento.
Um livro, mais do que um passatempo, é um professor. No meu quarto, mesmo na estante em frente à cama, tenho muitos professores. Uns ensinam-me a explorar mundos ficcionais, outros a cuidar de tartarugas, depois, bem no canto da estante, está um de Geografia e ao lado, uma colecção infindável de professores que, mais do que matérias, ensinaram-me valores, incutiram em mim morais, sentimentos. A esses, chamo de Amigos, são os meus preferidos.
Passámos horas juntos. Partilhámos histórias de adolescentes, praias e montanhas. Percebi que até tínhamos amigos em comum. Um desses meus amigos até me ensinou a prestar os primeiros socorros a alguém que tenha sofrido uma mordedura de cobra. O meu favorito partilhou comigo uma cela de uma égua branca com um nome de deusa – Perséfone (esta era, na mitologia grega, a esposa de Hades – aprendi isto também num livro), e cavalgámos a gelada e taciturna baixa de Tulsa, no Inverno.
A minha escola, que é aquela prateleira, contém de tudo um pouco. E ainda bem!
Orgulho-me de apreciar um livro ao som de músicas serenas ou apenas com sons da própria Natureza. Também sou uma pessoa serena. Orgulho-me de ser assim, talvez devido às minhas influências literárias.
Gosto de rir com Bocage, sonhar com Sophia, chorar com Florbela. Viajar com Miguel Sousa Tavares, com Camilo Castelo Branco. Viver intensamente, amar e sofrer com Camões.
A herança literária portuguesa é enorme. Autores de gerações tão distintas ensinam-nos coisas tão distintas, também. E é neste conjunto de letras que a minha escola se funda, se baseia. Em aprendizagens múltiplas e intemporais, com professores fantásticos e imortais.
Produza um texto narrativo ficcional em que seja apresentada uma acção que contenha as seguintes características:
E ali me encontrava eu, sentada na grande sale de negócios da empresa, rodeada de contabilistas, advogados, engenheiros e um economista. Eu estava mesmo em frente ao Frank, o economista.
Trabalhamos juntos há cerca de três anos na iTech, a gigante mundial de comunicações. Frank é doutorado em economia e estava a fazer um discurso sobre os lucros do último trimestre:
- Portanto, se conseguirmos duplicar o rendimento do produto, talvez com mais publicidade, as acções subirão. Dessa forma, meus senhores, podemos investir na exploração do mercado lunar…
Falava mesmo bem. Tinha o dom da oratória, acho. Era de descendência escocesa e viera para Portugal há pouco mais de vinte anos. Tinha uma pronúncia tão boa que diria que nascera português.
Onde passasse, não o fazia despercebido. Era corpulento, vigoroso e claro como um raio de sol avermelhado. Os seus olhos eram tingidos de um azul profundo e tinha o cabelo encaracolado, com algumas madeixas pendentes na testa. Madeixas cor de bronze, cor de pôr-do-sol, como só ele tem. Trabalhava com excelência, com gosto e aprendia depressa. Era um dos mais carismáticos do escritório, o que deixava todos os “rabos de saias” (e até mesmo o rapaz da secretaria) com um olhar completamente petrificado, ao ritmo dos seus passos. Ele era, de facto, o homem que alguma vez alcançaria…
- Concorda, Doutora Clara? – os seus olhos fitaram-me e despertei do transe provocado por eles, anteriormente.
- Ah, sim. Portanto, eu tratarei de todos esses requerimentos amanhã e peço que imprimam o contrato com os fornecedores. – acabei, orgulhosa, por ter conseguido dar continuidade ao seu raciocínio, sorrindo.
Estava a chover, um dia cinzento de Agosto e, à saída, Frank ofereceu-se para me acompanhar até ao táxi, com o seu guarda-chuva. Em vez de algum tipo de conversa, trocamos palavras como “cuidado!” ou “que frio!”. Mas também não queria nada arriscar-me a transformar os meus longos caracóis de herança francesa em uma carapinha.
Foi um dia de trabalho esgotante. Eu gosto de ser advogada e trabalhar na iTech, mas, num dia destes de inverno, a lareira acesa e uma boa chávena de café eram o suficiente para que passasse o dia absorta na escrita.
À noite, preparei um banho quente, liguei o sistema de cinema da casa de banho, trouxe um balde de gelado e uma cerveja. Era sexta-feira e, ao invés de ir a algum clube, preferi relaxar e estar sozinha. Deixei, até o telemóvel na sala, para não ceder ao impulso de o atender, em caso de alguma chamada.
Mas, assim que a minha improvisada sessão caseira de spa começou, o maldito tocou incessantemente. Revirei os olhos e quase recusei sair do meu estado zen. Mesmo assim, saí da banheira, enrolei a toalha no corpo e fui a escorregar até ao pequeno objecto que me irritava tanto e do qual era completamente dependente, deixando um rasto de espuma.
- Caramba! Esta toalha é minús… Ai! – recompus-me. – Pronto. Estou sim?
- Doutora Clara? – do outro lado, uma voz familiar. – Daqui é da iTech e estou a ligar-lhe para fazer um breve questionário.
- Ah? Peço desculpa, enganou-se?!
- Não. Primeira pergunta: caso eu fosse o Frank, e a convidasse para jantar, aceitaria?
- Bem, eu não sei quem o se… – indignada com tal atrevimento, respondi, furiosa, mas não permitiu que acabasse a frase e apostou numa nova investida.
- Visto que há uma probabilidade de noventa e nove para cem de vir, a sua resposta é “sim”. Hoje, às vinte, no Vision?
Limitei-me a pedir licença, pronta a desligar, mas ouvi o sujeito desculpar-se.
- Sou eu, o Frank. Estava a brincar! Vá lá, precisas de descontrair, é sexta.
Antes que pudesse deliberar qual a melhor hipótese, já tinha aceitado.
Vesti-me à pressa, soltei o cabelo e apanhei um táxi e, em vinte minutos, cheguei à baixa. Nunce me tinha apercebido que o trânsito era caótico nas noites de sexta-feira. Talvez se deva ao facto de não ter uma vida muito social.
Ele tinha reservado a mesa e o jantar foi muito agradável, cheio de gargalhadas. Comemos sushi. Apesar de nunca ter experimentado, gostei, mas, mesmo assim, não me atrevi, por nada, a tentar adivinhar que animais estariam no prato.
Rimos, falamos e descobri que tem vinte e sete anos.
– Nada se compara aos Semisonic. São a melhor banda. – falava sorridentemente. Nunca pensei discutir música com o Frank. – Se bem que os Blunt…
– Eu… eu gosto de ouvir jazz quando trabalho… ou quando escrevo.
– Tu? A escrever? Não me digas que estou a falar com o próximo Nobel da Literatura.
– Goza, goza. Estou a falar a sério. – sinceramente, não sei porque me abri com ele, nem sequer somos muito próximos. – Mas a advocacia…
–... Tira-te todo o tempo para escrever. – concluiu e anuí. – Quantos anos tens? Vinte e seis?
– Vinte e oito.
– Pronto, ainda vais a tempo. Olha, um segredo: eu toco baixo eléctrico.
– Tu? Consigo imaginar-te todo vestido de preto, coberto de tatuagens e cheio de piercings, com o cabelo desgrenhado. – rimo-nos com esta última observação.
– Desgrenhado já ele é, falta o resto. Continuando, gostaria muito de ler uma obra tua.
Sorri e acho que corei, e nada mais disse.
Depois do jantar, caminhamos até minha casa.
– Ainda bem – pensei – que comprei aquele robô inteligente, que limpou as poças da água que tinha deixado no chão e a loiça por lavar.
Mostrei-lhe o meu rascunho e Frank leu algumas partes.
– Já o escrevi há algum tempo, mas, para publicar online, é preciso uma editora, dinheiro, tempo… e sorte, muita sorte.
– E talento, que tu tens. – senti as minhas faces ruborizadas. – Um romance histórico que parece estar fantástico. É incrível como, há coisa de quinhentos anos, ainda usavam combustíveis fósseis. Será que alguém pensou em nós? – rimo-nos, novamente. – Mas, definitivamente, está muito bom. Segue o teu sonho Clara!
– E o teu sonho de ser baixista, hã, Senhor Economia?
– Não é um sonho. Eu vivo o meu sonho: sou economista, tenho um bom emprego numa interplanetária em ascensão e um bom salário. Tenho uma casa, um cão que só faz disparates e estou em Portugal. Na verdade, estou a passar o meu serão com uma advogada escritora que, por sinal, é extremamente bonita.
– Claro, claro. O vinho fez-te mal, obviamente.
As semanas foram passando e, mais motivada pela amizade com Frank, eu tomei a decisão que adiei durante anos: demiti-me daquele casulo e voltei-me para a escrita. Liguei aos meus pais e contei-lhes.
A minha mãe não disse nada, limitou-se a suspirar e a passar o telemóvel ao meu pai que, no que achei ser apenas teimosia, discordou inteiramente comigo, berrou e deixou claro de que, para ele, eu morrera.
Como filha única, o legado da família Montenegro dirigia-se exclusivamente a mim. Apenas nos restam uns primos em Paris do lado da minha mãe, pois todos os irmãos do meu pai morreram durante a Terceira Guerra Mundial, num atentado a Lisboa.
Infelizmente, dois meses após o corte de qualquer ligação com os meus pais, a minha mãe ligou-me:
– Filha, Clarinha, anda ter comigo ao hospital. O Papá… – seguiram-se cinco minutos de choro.
– Mamã? Mamã? Por favor.
– Internado. Não me explicaram bem. Não sei. Um acidente e…
Quando lá cheguei, vi um médico falar com ela. Um rapaz novo, com um ar ainda infantil. Aproximei-me.
– O impacto fez com que rompesse e agora está espalhado pelo crânio. Vamos esperar. Lamento muito. – e deixou-nos numa sala de espera estéril, vazia, fria.
– Então?
– Ele tem andado nervoso desde que, bem, desde que deixaste a advocacia. E já tem a sua idade. Está em coma. – vendo-me com ar de culpa, acrescentou – a culpa não foi tua.
Abraçamo-nos durante o que pareciam anos.
Recusei-me a ir para casa deles. Voltei para casa mas não dormi. Escrevi. Decidi dar um novo rumo à minha história.
Enquanto parágrafos eram acrescentados ao meu livro, na minha vida nascia um novo capítulo.
O meu pai estava em coma havia um mês e, com tudo o que se havia passado, a Mamã entrou num estado depressivo. Enchia-se de medicação, fechava-se em casa e bebia desmedidamente.
O Frank estava em viagem. Sem amigos desde a faculdade e sem familia, eu estava completamente desamparada. Nos quatro meses que se seguiram, todas e quaisquer esperanças que existiam em relação à recuperação do Papá desapareceram. Assinei a declaração do processo de morte clinicamente assistida. Com a minha assinatura, desliguei-lhe o coração. O coração que me amou, sempre e incondicionalmente.
A Mamã estava com uma grave depressão e foi-me aconselhado pelos psiquiatras que não lhe contasse que o homem, a quem dedicou toda a sua vida, morreu, nas mãos da própria filha.
Cremei o meu pai sozinha, sem a presença de um amigo ou familiar com quem chorar. Apenas eu, o reverendo e o rapaz da funerária. E o corpo inerte do meu Papá, reduzido a cinzas em cinco minutos.
Quando se notaram melhorias da parte da minha mãe, contei-lhe. Não derramou uma única lágrima. Perguntei a mim mesma se ela me teria ouvido, pois teve uma única reacção: não reagir. Olhou-me fixamente com os olhos vazios como quem derramou toda a cor deles, anteriormente, existente. Não pronunciou uma única palavra. Terá sido aquilo algum tipo de reacção? Talvez aquilo tivesse sido a resistência dos antidepressivos e não da Mamã.
Gastei imenso dinheiro na recuperação da Mãe, no melhor hospital privado, com os melhores cuidados e tratamentos. Sem emprego, agarrei-me novamente à escrita.
Novamente desanimada, mudei o rumo do meu livro, uma narrativa sobre uma mulher biónica, com força física e espiritual. Aquilo que nunca tive.
O Frank aparecia de vez e quando trazia-me o pequeno-almoço do Starbucks ou ramos de margaridas. Fazia-me companhia e construía sorrisos.
Contudo, todos os esforços não salvaram a minha mãe.
Havia uma semana que exagerava, às escondidas, da dose de álcool, incompatível com os antidepressivos. A minha mãe morreu de overdose.
Este último acontecimento foi a gota de água num oceano sobrelotado de lágrimas.
– Matei os meus pais. Morreram e a culpa é minha. Ambos de desgosto, Frank, por terem uma filha como eu.
– Shh… – e embalou-me nos seus braços como se eu fosse uma criança. Beijou-me e apoiou-me sempre.
Aquele que sempre rira a meu lado, tocava-me nas horas de choro. Eternizou os beijos e fez com que superasse todos os desgostos da minha vida, a seu lado.
Numas férias à Escócia, casámos.
Estou a viver o meu sonho. Tenho trinta anos, sou autora de best-sellers, vivo com o meu Frank e temos um cão que, realmente, só disparata.
De facto, há bens que vêm por mal. Uma carreira contrariada, um sonho esquecido e a perda da minha família. Todos estes capítulos do meu livro trouxeram o final do conto de fadas.
“E vivemos felizes para sempre!”
Miguel Torga é o pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha, nascido a 12 de Agosto de 1907, em Vila Real, e falecido a 17 de Janeiro de 1995, em Coimbra.
De sangue transmontano, Torga expunha as suas influências das origens humildes nos seus trabalhos.
Médico de profissão, foi um artista por vocação: foi poeta, escritor de contos, memorialista, escreveu também romances, peças de teatro e ensaios.
Natural de Sabrosa, era filho de Francisco Correia Rocha e Maria da Conceição Barros. Passou a sua infância no campo e em 1917, aos 10 anos, foi para o Porto, para a casa de uns parentes endinheirados, onde servia de porteiro, moço de recados, jardineiro, empregado de limpeza. Um ano após a sua chegada, devido à constante insubmissão, foi despedido. Aos 11 anos foi mandado para o seminário de Lamego, onde estudou Português, Geografia e História, aprendeu latim e ganhou familiaridade com os textos sagrados, servindo assim o tempo que passou no seminário como crucial e decisivo na sua carreira literária. Apesar dos estudos religiosos, não seguiu o sacerdócio.
Emigrou para o Brasil em 1920, ainda com doze anos, para trabalhar na fazenda de café de um tio. Este que, após quatro anos, financiou-lhe os estudos liceais, em Leopoldina. Torga distinguiu-se como um aluno dotado e, em 1925, convicto de que ele viria a ser doutor em Coimbra, o tio pagou-lhe os estudos como recompensa dos cinco anos de serviço, o que o levou a regressar a Portugal e concluir os estudos liceais.
Em 1928, entrou para a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e publicou o seu primeiro livro de poemas, Ansiedade.
Em 1929, com vinte e dois anos, deu início à colaboração na revista Presença, folha de arte e crítica, com o poema “Altitudes”.
Em 1930, deixou de colaborar com esta revista, por «razões de discordância estética e razões de liberdade humana», e assumiu uma posição independente.
Em 1934, aos 27 anos, Adolfo Correia Rocha cria o pseudónimo "Miguel" e "Torga". Miguel, em homenagem a dois grandes vultos da cultura ibérica: Miguel de Cervantes e Miguel de Unamuno. Já Torga é uma planta brava da montanha, que deita raízes fortes sob a aridez da rocha, de flor branca, arroxeada ou cor de vinho, com um caule incrivelmente rectilíneo.
A obra de Torga traduz rebeldia contra as injustiças e inconformismo diante dos abusos de poder. Reflete sua origem aldeã, a experiência médica em contacto com gente pobre e ainda os cinco anos que passou no Brasil (dos 13 aos 18 anos de idade), período que deixou impresso em Traço de União (impressões de viagem, 1955) e em um personagem que lhe servia de alter-ego em A criação do mundo, obra de ficção em vários volumes, publicada entre 1937 e 1939. As críticas que fez aí ao franquismo fizeram com que fosse preso, em 1940.
Neste mesmo ano, casou-se com Andrée Crabbé, uma estudante belga que, enquanto aluna de Estudos Portugueses, em Bruxelas, viera a Portugal fazer um curso de verão na Universidade de Coimbra. O casal teve uma filha, Clara Rocha, nascida a 3 de Outubro de 1955.
Crítico do sistema da praxe e das restantes tradições académicas, chamava depreciativamente «farda» à capa e batina.
Amante da cidade de Coimbra, onde exerceu a sua profissão de médico a partir de 1939 e onde escreveu a maioria dos seus livros.
Em 1933 concluiu a licenciatura em Medicina pela Universidade de Coimbra. Começou a exercer a profissão nas terras agrestes transmontanas, pano de fundo de grande parte da sua obra. Dividiu seu tempo entre a clínica de otorrinolaringologia e a literatura.
Após o 25 de Abril, queda do regime fascista, em 1974, Torga surge na política para apoiar a candidatura de Ramalho Eanes à presidência da República (1979). No entanto, não gostava da agitação e da publicidade e manteve-se distante de movimentos políticos e literários.
Foi um autor prolífero, publicou mais de cinquenta livros ao longo de seis décadas e foi várias vezes indicado para o Prêmio Nobel da Literatura.
Torga, sofrendo de cancro, publicou o seu último trabalho em 1993, vindo a falecer em Janeiro de 1995.
A sua campa rasa em São Martinho de Anta tem uma torga plantada a seu lado, em honra ao poeta.
Escreveu os romances:
Analisando o pseudónimo literário que o poeta Adolfo Correia Rocha adoptou – Miguel Torga – constata-se que esta opção está intimamente relacionada e não se pode dissociar da íntima ligação do homem com a natureza e, por sua vez, com a poesia.
Pode ser considerado um poeta mítico que vivia na intimidade das forças elementares: Terra, Sol, Vento e Água.
Não obstante e diversidade da sua obra, (poesia, teatro, narrativa de ficção - romance, contos) existem marcas inconfundíveis em todos os seus escritos: um estilo vibrante, umas vezes de enternecimento, outras vezes de revolta; uma força telúrica que o puxa para a terra, sobretudo para a terra transmontana; uma espécie de panteísmo que o leva a ligar com grande efeito poético, o físico ao transcendente; o continuado jogo de contrastes (bem – mal; angústia – esperança; sombra – luz), verificados, a maior parte das vezes, no seu “eu”.
A terra, a mítica da natureza, a força telúrica, é o grande polo de atracção poética, a sua maior força de inspiração. Nas suas frequentes alusões ao povo, é sobretudo o povo da terra, o povo rústico que lhe interessa. Para ele, a terra é o homem e o homem é a terra. O psicologismo de Torga está na emanação do seu “eu” com este mundo físico e humano.
Analisando a obra de Torga, constata-se uma incidência em certas palavras por ele usadas como: seiva, cio, germinar, partir e também cacho, vinho, mosto (a conotar o delírio das inovações báquicas), estão estreitamente ligadas ao polo mais importante da sua inspiração: a terra e a vida.
Por outro lado, os signos, sonho, mito, lua, estrela, astral, ligam-se ao outro polo: o espírito, a transcendência.
Poderá, então, concluir-se que a temática de Torga se centra, ou assenta, em três grandes pilares:
Durante as aulas de projecto, realizei vários trabalhos em torno do conto “Fronteira”. Este conto, da autoria de Miguel Torga, insere-se na obra “Novos Contos da Montanha”.
Depois da leitura deste conto, fiquei com uma opinião bastante positiva do mesmo, devido ao facto de relatar dois temas de interesse, que, conjugados da maneira certa, trouxeram muito bons resultados: o contrabando e o amor.
A narração situa-se na aldeia de Fronteira, em Fuentes. Robalo e Isabel são as personagens principais: Robalo é um guarda austero que penaliza qualquer acto que infrinja a lei; e Isabel uma contrabandista de sedas. O que não esperam é apaixonarem-se.
Duas realidades completamente diferentes colidem e, como em Fronteira as pessoas vivem do contrabando que vão buscar a Espanha e Robalo opõe-se completamente ao esse ofício, este torna-se um amor impossível.
Isabel, no entanto, engravida e na noite de Natal dá à luz um filho de Robalo. Nessa noite de neve, o coração gélido de Robalo dissolve-se pelo amor, o que faz com que este se junte ao resto da população como contrabandista de armas.
Gostei muito do enredo deste conto, pois é interessantíssimo: a relação entre a vida em torno do contrabando e lei, sendo um código não aceite; e como o amor pode mudar alguém tão soturno e inflexível como Robalo, levando-o a negar os seus valores e morais para se juntar à mulher e ao filho em Fronteira.
Recomendaria este conto a estudantes de Língua Portuguesa, pois, para além de ser um conto sem datação, é possível entender que a narração decorreu por volta do início do século XX, e isso mostra-nos a realidade que se vivia entre Portugal e Espanha.
Também é visível a ideia de que o amor vence as barreiras das leis e que até mesmo o coração mais duro é capaz de ceder a sentimentos fortes como o amor, e isso é intemporal.
Depois de uma leitura cuidada de “Fronteira”, é possível verificar que este conto tem um tema: a luta pela sobrevivência, à margem da lei – o contrabando.
Este tema reflecte sobre a vida do povo de Fronteira que, devido à infertilidade da sua terra, é “obrigado” a dedicar-se ao contrabando a fim de se sustentar.
O título desta obra é “Fronteira” e esta palavra remete para que seja associado a vários sentidos. Um dos sentidos é o sentido denotativo que a palavra apresenta, visto que o conto se passa na localidade chamada Fronteira, que se situa, perto da fronteira entre Portugal e Espanha, em Fuentes.
No contexto do conto, fronteira significa ainda o confronto entre a lei da vida, que representa os contrabandistas que lutam pela sobrevivência, e a lei do Estado, representada pelos guardas que apenas cumprem a sua função para sobreviverem.
Apresenta ainda um simbolismo entre o Robalo e Isabel (namorados), visto que Robalo é um guarda e tem o dever de cumprir a lei; Isabel, por sua vez, é uma contrabandista que, devido à sua actividade, transgride a lei. Dentro deste contexto, existe ainda uma bipolarização de sentimentos por parte do Robalo: o Robalo-guarda que tem o dever de prender Isabel e o Robalo-homem que, esquecendo o trabalho de Isabel, a deseja.
Este conto é constituído por duas intrigas: a principal, que trata da luta de Fronteira pela sobrevivência, e a secundária, que é o amor entre Isabel e Robalo.
A acção principal é aberta, pois o destino dos habitantes de Fronteira não é conhecido, mas pressupõe-se que continuem a sua luta contínua e diária para sobreviver. Além de que o narrador relata que esta luta sempre existiu (“Desde que o mundo é mundo...”) e que não terminará tão cedo (“…Fronteira e o seu destino.”). A história de Robalo e Isabel, eventualmente, acaba por corroborar esta ideia, pois Robalo deixa de ser guarda para se tornar contrabandista. E isto tem especial importância, visto que este representa o guarda e o Estado em toda a sua força, mas que, contudo, acaba por se render à “lei da vida”, ou seja, ao contrabando.
A acção secundária, por sua vez, é fechada, pois conhece-se o destino dos dois amantes – eles acabam por ficar juntos, após uma série de peripécias que retratam a relação entre os guardas e os contrabandistas: um entendimento, seguido de uma tensão entre as duas forças até ao alcance de um novo entendimento ou até à rendição dos guardas ao destino de Fronteira e dos seus habitantes. Esta acção está encaixada na acção principal através de uma analepse (“Desses saltos do quotidiano de Fronteira, o pior foi o que se deu com a vinda do Robalo.”).
A personagem principal da acção central é a própria localidade, Fronteira (“…Fronteira desperta.”; “Mas Fronteira tinha de vencer”). Fronteira é, neste conto, uma personagem colectiva, sendo, por isso, muito importante na história. O nome "fronteira" é também importante porque se reveste de grande simbolismo, pois representa, não só a fronteira entre Portugal e Espanha, mas também a fronteira entre guardas e contrabandistas e entre o ser humano e o que o rodeia.
É possível, ainda, encontrar, na acção principal, algumas personagens-tipo. Elas são, por exemplo, o Valentim, o Sabino, o Rala, o Salta e a Isabel, entre outros. Estes são descritos directamente (“…[Valentim] magro, fechado numa roupa negra…”, “ O Salta, que parece anão…” e “ [Isabel] aquilo são pés de veludo.”) e indirectamente (“ [Sabino] parece um rato a surgir do buraco.”, “ O Salta… chega ao cruzeiro, benze-se…”). Convém, ainda, mencionar o facto de estas personagens existirem para conferir plausibilidade à história.
As personagens principais da acção secundária são Robalo e Isabel. Como referia anteriormente, eles acabam por encarnar a “luta” entre guardas e contrabandistas: ele é um guarda escrupuloso e duro, tão consciente da sua função que reprime os seus instintos de Homem, até para com a sua amante, Isabel (“…parecia um cão a guardar.”; “sítio que rondasse era sítio excomungado.”, “ gosto muito de ti, tudo mais, mas se te encontro…atiro como a outro qualquer.”; “cego e frio dentro da função”) e ela, a contrabandista, orgulhosa e determinada, bela e irresistível (até para os guardas) - “A rapariga tirava a respiração a um mortal.” –, tão necessitada de ganhar a vida com o contrabando que parecia sempre grávida, o que deu lugar a equívocos (“Este volume todo é gente...”).
Como se pode verificar, as personagens são caracterizadas directa e indirectamente e, aqui, embora Isabel seja protagonista, ela é uma personagem plana – permanece orgulhosa, determinada e corajosa até ao fim, não muda nunca. O Robalo, por sua vez, desiste de ser guarda para ser contrabandista – esta decisão revela uma mudança da sua parte, logo, ele é uma personagem modelada.
Quanto ao espaço, a acção da narrativa desenrola-se na fronteira entre Portugal e Espanha, no posto da guarda, no ribeiro, em Vila Seca, sendo ainda referidos outros espaços: Minho (Portugal), Fuentes, Lovios, Torneros e Vigo (Espanha). A acção passa-se maioritariamente em Fronteira (“Pequenina, de casas iguais e rudimentares, escondida do mundo nas dobras angustiadas e ossudas de uma capucha de granito”.). Contudo, algumas cenas passaram-se no ribeiro (“E, quando os passos se molharam… à margem…”).
Relativamente ao espaço psicológico, há a destacar os momentos que dão conta da vivência interior de Robalo, referidos através de discurso indirecto livre, onde o narrador revela os pensamentos, emoções e sonhos da personagem (“Pena a Isabel ter-lhe saído contrabandista… tê-la encontrado numa terra daquelas…senão, mais tarde, quando tivesse a reforma…Até mesmo agora…”).
Através das seguintes citações, revela-se que o espaço social onde decorre a acção é pobre e rural: (“…casas na extrema pureza de uma toca humana, e aqueles seres deitados ao Sol como que esquecidos da vida…)”; (“Desde que o mundo é mundo que toda a gente ali governa a vida na lavoura que a terra permite. E, com luto na alma ou no casaco, mal a noite escurece, continua a faina.”).
Quanto ao tempo, através dos dados fornecidos ao logo do texto, pode concluir-se que a acção central ocorre daquele modo desde há muito tempo e que continuará a ocorrer assim durante outro tanto (“Desde que o mundo é mundo que toda a gente ali governa a vida na lavoura que a terra permite”), sendo difícil de definir por ser muito vago. Pode até dizer-se que esta história poderia ocorrer em qualquer tempo (no presente, no passado, ou até no futuro), o que lhe confere características intemporais.
Por sua vez, a acção secundária deve ter-se realizado em pouco mais de nove meses, visto que esta narra a história de Robalo e Isabel, iniciando-se pouco antes de estes se conhecerem e terminando após o nascimento do seu filho.
Quanto ao tempo psicológico, não existem muitas informações, especialmente no que toca à acção principal, mas pode deduzir-se que o tempo da acção secundária foi relativamente curto para Robalo (“Como a vida em Fronteira é de noite que se vive… puderam decorrer meses sem o rapaz pôr os olhos sequer na rapariga.”).
Este conto apresenta uma narrativa bem organizada cronologicamente (“Já lá vão anos…”, “ Quando a noite desce…”, “E até ao Natal…”), mesmo apesar de as duas acções estarem ligadas através do encaixe (a acção secundária encaixa na acção principal). A acção secundária apresenta também uma característica discursiva típica do conto: o sumário. Este foi aplicado aos meses de gravidez de Isabel, que são assim mencionados: “… puderam decorrer meses sem o rapaz pôr os olhos sequer na rapariga.” e “E até ao Natal a vida foi deslizando assim.”.
No tempo do discurso há o recurso a analepse: (“O Rala, de braço bambo da navalhada que o D. José, em Lovios, lhe mandou à traição…”); sumário: (“Em 15 dias foram dois tiros no peito do Fagundes, …por um triz.”); elipse: (“E até ao Natal, a vida foi deslizando assim…o que já se esperava.”).
O narrador desta história é, quanto à presença, não participante. Ele é omnisciente pois sabe o que se passa no interior das personagens (“Comovido, deixou-se perder por momentos na vaga mansidão da brancura.”), apresenta indícios sobre o que vai ocorrer e é subjectivo pois faz comentários (“Mas Fronteira tinha de vencer.” ; “…porque o Diabo põe e Deus dispõe.”).
Após o estudo do conto, pode concluir-se que este não possui narratário explícito, ou seja não há qualquer indicação quanto à sua identidade.
Neste conto, predomina claramente a narração, não fosse este facto característico deste tipo de narrativa (conto) – “Quando algum não regressa… a passar o ribeiro.”. Contudo, podemos encontrar excertos de descrição (“A rapariga tirava a respiração a um mortal. Vinte e dois anos que nem vinte e dois dias de S. João. Cada braço, cada perna, cada seio, que era de a gente se lamber.”).
Este conto é pobre em diálogos e em monólogos, sendo estes, na sua maioria, curtos e sintéticos (“ – O Valentim?...Parecia um bombo.”).
Por parte do narrador há também recurso ao discurso indirecto livre – “E quem havia de lhe entrar pelos olhos dentro ao natural, cobertinha da luz doirada do sol?”; e ao discurso indirecto – “ E se por acaso se juntam na venda do Inácio uns e outros - guardas e contrabandistas -, fala-se honradamente da melhor maneira de ganhar o pão: se por conta do Estado a vigiar o ribeira, se por conta da Vida a passar o ribeiro.”.
Neste conto é possível verificar que predominam determinados recursos estilísticos:
Cada um deles tem um papel importante na narrativa, mas, de entre todos, podemos destacar o papel da personificação (por vezes animismo, pois dá movimentação a Fronteira) e da antítese. A primeira tem muita importância pois permite ao leitor entender Fronteira como uma personagem que não só encarna todos os seus habitantes, como também parece ser uma entidade exterior a eles; a antítese, por sua vez, opõe as duas forças em permanente confronto que “ditam” a vida em Fronteira e no conto: os Guardas (Lei do Estado) e os contrabandistas (lei da vida).
Na acção secundária do conto encontram-se, também, variadas comparações e metáforas que associam Robalo a um cão de guarda (“…parecia um cão a guardar.”, “…a sua ladradela de mastim zeloso…”), o que permite ao leitor aperceber-se da personalidade teimosa e do profissionalismo da personagem.
Outras comparações surgem, ainda, para descrever a sua relação com Isabel, destacando-se, por exemplo, estas: “…o lume pegou-se à estopa…”, o que é uma maneira de dizer que se apaixonaram quase imediatamente (a estopa é muito inflamável, logo, em contacto com o fogo incendeia facilmente) e “… a presença da rapariga era como um enigma sagrado para ele…”. Esta última – apresentada imediatamente antes de Isabel dizer que estava grávida - transmite a ideia de que Robalo não compreende Isabel, mas que a acha muito bela, misteriosa (enigma) e sedutora (sagrado).
É possível encontrar neste conto alguns elementos simbólicos. Eles são, por exemplo, a toca dos habitantes da Fronteira (que parece não só simbolizar a protecção que as suas casas lhes proporcionam, mas também fazer uma comparação entre os aldeãos e animais selvagens, pois são obrigados a proteger-se e a refugiar-se); o ninho de Robalo e Isabel (que é o nome que o narrador dá à casa dos dois e é uma forma indirecta de os comparar aos “pombinhos” e de deixar transparecer o carinho da sua relação); e a noite da véspera de natal. Este é um elemento simbólico de grande importância pois concede ao filho dos dois o mesmo dia de anos de Jesus Cristo, comparando, assim, aquele que trouxe um novo rumo ao mundo, àquele que trouxe um novo rumo à vida de Robalo.
Outro elemento simbólico muito importante é a própria Fronteira. Esta simboliza não só aqueles que vivem a lei da vida, mas também a “fronteira” entre Portugal e Espanha, entre guardas e contrabandistas e entre o ser humano e o que o rodeia, como já foi disse
Conto é uma narrativa curta e que se diferencia dos romances não apenas pelo tamanho, mas também pela sua estrutura: há poucas personagens, nunca analisadas profundamente; há acontecimentos breves, sem grandes complicações de enredo; e há apenas um clímax, no qual a tensão da história atinge seu auge.
No conto, tempo e espaço são elementos secundários, podendo até não existir. Além disso, os próprios acontecimentos podem ser dispensáveis.
O enredo do conto deve apresentar, de modo geral, as seguintes fases:
Deve evitar-se o uso de repetições, utilizando sinónimos. O conto não deve cansar o leitor. Pode enganar-se o leitor usando um raciocínio lógico falso que o induza a pensar de uma forma, mas nunca dizer o óbvio.
O título não deve sugerir o conteúdo do conto. Os títulos curtos são sempre melhores e intrigantes.
Eliminar explicações e descrições que não tenham importância para a história, cortar parágrafos dá uma ideia de maior dinamismo ao conto.
Não se deve utilizar excessivos verbos nominais, nem os pronomes reflexivos, de modo a não tornar a leitura cansativa. Evitar também o uso demasiado de conjunções copulativas.
Eterna juventude – conto de autoria própria
“– Há muitos anos, há tantos que a memória ou a imaginação não alcançam, aconteceu na ilha de Skye, na Escócia, uma história que apesar de não ser singular, transporta sentimentos que o coração não controla.”
Ela observou-o com toda a atenção.
“– Um pescador, pobre e trabalhador, labutava diariamente ao lado da sua família em busca de uma vida melhor.
Emmanuel, um nome incerto, pois o seu nome dissolveu-se nas brechas do tempo, era alto e bem constituído. O seu olhar puro mostrava bem a sua natureza pacata. Dos seus olhos verdes, profundos, transparecia toda a lealdade do seu ser.
Pescar no inverno de Skye era a mais árdua das lides pelo simples facto de todas as superfícies estarem cobertas da alvura gelada da estação e do vidro glaciar.
O rio Leathan estava congelado e toda a vida em redor repousava, lúgubre e melancolicamente na beleza sazonal.
Emmanuel mantinha uma amizade secreta com uma moça do senhorio dos MacWorthe: Leonor. Era novita, formosa, segundo o que se diz, e costumava andar pela vila a vender leite.
Conheceram-se quando o pai de Emmanuel o levou à vila de MacWorthe e, desde então, desde que a viu, que o sol das manhãs o aquece com mais intensidade, a sonolência o torna mais feliz e no sono encontra o paraíso: Leonor.
Trocavam palavras de amizade, alguns poemas ridículos.
Porque ele a amava. Porque sempre que fechava os olhos, Emmanuel via-a por detrás das pálpebras.
Então, quando o criado da Granja ia buscar os cavalos, o rapaz dava-lhe a correspondência e esperava por um bilhete, também.
O pai de Leonor pertencia ao clã Beaton e, portanto, era um homem íntegro, muito respeitado, inflexível, mas benévolo. Ora, sendo Emmanuel um moço modesto, sem quaisquer poupanças – ainda – para sair de casa dos pais e comprar uma pequena veiga, nunca teria a honra da permissão de Beaton para casar com Leonor.
Passaram-se meses e Emmanuel, cheio de coragem, surpreende-se ao chegar a casa dos Beaton, onde vê Leonor com um homem. Casada e já de barriga.
O desgosto tornou-se em exílio. Afastou-se para o interior de Applecross.
Os anos passaram, loucos. Emmanuel enriqueceu numa pequena herdade, mas nunca fora o mesmo desde que perdera a chama que fazia o seu coração vibrar. Apesar da riqueza, sentia-se cada vez mais vazio e, já um homem feito, numa visita à vila de MacWorthe reencontra Leonor, com um ar infeliz a dar lugar às rosadas maçãs do rosto, como estava habituado, anos atrás, a vê-la.”
– Então, mas se ela gostava dele, por que é que casou com o outro?
“– Não queiras por a carroça à frente dos bois. Já te explico.
Ela amava-o. Sempre o fez. Mas fora obrigada pelo pai a casar e a cortar qualquer ligação com Emmanuel.
Deste modo, Emmanuel pediu a um catraio que estava a roubar ovos para lhe levar um pequeno bilhete.
Apenas dizia que sentia a falta das promessas eternas que costumavam fazer e que gostava de vê-la.
E pronto, Leonor respondeu-lhe que dali a duas semanas se encontrassem num casebre perto de Leathan.
Assim fizeram.”
– Eles deram um beijo?
“– Deram, sim. Um beijo. E combinaram fugir. E por via do destino, que sempre quis que ficassem juntos, os dois amigos enamorados combateram contra a barreira do tempo e contra o obstáculo da mentalidade e foram viver para Port Ellen, esquecendo o passado e vivendo o amor que sempre os uniu.”
– Essa história é real, avô?
– Não sei, é uma história do tempo. Todas as histórias são reais, basta querermos.
– Isso quer dizer que viveram felizes para sempre, não é?
– Claro que sim, Gilian, o verdadeiro amor prevalece sempre. – respondeu, amavelmente, com um sorriso, também perdido no tempo.
Os avós entreolharam-se e a cumplicidade de anos prevaleceu, juntamente com a simplicidade do amor de dois miúdos.
De um lado terra, doutro lado terra;
De um lado gente; doutro lado gente;
Lados e filhos desta mesma serra,
O mesmo céu os olha e os consente.
O mesmo beijo aqui; o mesmo beijo além;
Uivos iguais de cão ou de alcateia.
E a mesma lua lírica que vem
Corar meadas de uma velha teia.
Mas uma força que não tem razão,
Que não tem olhos, que não tem sentido,
Passa e reparte o coração
Do mais pequeno tojo adormecido.
Prospecção…
Não são pepitas de oiro que procuro.
Oiro dentro de mim, terra singela!
Busco apenas aquela
Universal riqueza
O tesoiro sagrado
Puro como um deserto.
Inteiramente nu e descoberto.
Miguel Torga
Cavo,
Lavo,
Peneiro,
Mas só quero a fortuna
De me encontrar.
Poeta antes dos versos
E sede antes da fonte.
Sísifo
Recomeça…
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar
E vendo
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.
Miguel Torga, Diário, XIII, 27.12.77
Na mitologia grega, Sísifo era um homem que enganou a morte e por isso foi condenado pelos deuses a executar uma tarefa inútil e sem esperança – subir e descer infinitamente uma montanha, carregando até ao cume um enorme rochedo que, próximo do topo sempre lhe escapava das mãos. Este castigo rotineiro e impossível serviu para mostrar-lhe que os mortais não têm a liberdade dos deuses. Os mortais têm a liberdade de escolha, devendo, pois, concentrar-se nos afazeres da vida cotidiana, vivendo-a em sua plenitude, tornando-se criativos na repetição e na monotonia.
Por muito que nos custe, por muito que às vezes não vejamos onde vamos buscar a força, mesmo com o desespero da consciência da inutilidade do esforço, ansiamos, por breves instantes de libertação no topo da montanha.
Na maior profundeza do meu ser, acredito que chego lá, e a cada queda recuso-me a parar. Sísifo é um irmão para mim, pois somos da mesma natureza, embora eu seja mais fraca e tenha os meus momentos de dúvida. Mas somos ambos absurdos.
Durante a pesquisa sobre este autor, encontrei uma entrevista feita a Miguel Torga e penso que tem um grande valor educacional, pois, para além de dar a sua opinião em relação a alguns temas como a educação, o ser-humano, o autor fala também de assuntos relacionados com a sua vida e obra, com a literatura, o que complementa o meu projecto sobre ele, sendo, portanto, possível fazer uma caracterização do autor através das suas próprias palavras.
Economizava as suas palavras e não dava entrevistas por princípio – contam-se pelos dedos de uma só mão as que concedeu ao longo de toda a vida, e só para jornais estrangeiros – Miguel Torga não se recusava, porém, a receber no seu consultório os jovens, em especial estudantes, que desejavam falar com ele sobre a sua obra. Mas, em 90, foi mais longe. Falou com as alunas do 10.º ano da Escola Secundária de Soure, acompanhadas de três professores. E aceitou que duas daquelas alunas e as professoras lhe fizessem uma entrevista. É essa entrevista que constitui, sob vários aspectos, um muito interessante documento.
Nesta entrevista, encontrei também referências que o próprio autor fez sobre o conto “Fronteira” que foram muito úteis durante a realização do meu trabalho sobre o mesmo e que me fizeram ver as fronteiras que existem entre nós, humanos, que são insignificantes, comparativamente à lei da vida.
Ent. - Sabemos que torga é uma urze, uma planta árida. Será que esse facto perpassa na sua escrita? É que não conseguimos deixar de notar como em contos como "O Lopo" ou "O Alma-Grande" há sempre uma violência inerente ao universo narrado, às personagens.
M.T. - Torga, é de facto, uma planta árida da montanha; mas não só da montanha, também em Penacova e perto de João do Campo se encontra muita. Quanto à violência que nos Novos Contos da Montanha possa estar inerente aos contos "O Lopo" e "O Alma-Grande", em ligação à aridez da torga, penso ser inconciliável. Se lerem os contos de Bichos, estes já são de outro teor, não têm nada a ver com esses dois contos.
O problema é saber o que significam esses contos; é saber se, psicologicamente, eles exprimem algum lado trágico da humanidade. Não vêem nos jornais coisas violentas? E na televisão? A humanidade não é violenta? Não há expressões violentas da alma humana? Não vêem todos dias as tragédias nas ruas? As pessoas deficientes, decepadas a pedir nas ruas?
Então, essas são as expressões do Homem, e os meus contos não dão só isso, dão também expressões boas, expressões santas da humanidade. Há violência no Garrinchas? Não, assim como não há violência em "O Marcos" ou "O Senhor".
Ent. - Falando das personagens que povoam os seus "Contos da Montanha". Pretende que elas sejam retratos vivos de pessoas suas conhecidas, ou simplesmente "ilustrações" de determinado meio?
M.T. - Escrevi num livro chamado Traço de União um capítulo grande, que foi de resto uma conferência que fiz no Brasil, na Casa de Trás-os-Montes, sobre essa mesma região. A leitura desse capítulo é fundamental para estudar os Novos Contos da Montanha e para ajudar a responder a esta pergunta, pois aí explico o que é a região e o que são as suas gentes. Aí afirmo que o universal é o local sem paredes… Compreendem isto? A conferência foi publicada em França com esse mesmo título. Não pintei as coisas de Trás-os-Montes para retratar uma realidade local.
Um dia vieram cá ao meu consultório uns estudantes estrangeiros - um japonês, um alemão, um francês e um italiano –, estavam a ler os Novos Contos da Montanha num curso de férias e vieram cá porque me queriam conhecer. Perguntei-lhes por que razão estavam tão entusiasmados, impressionados com esses contos. Responderam-me, o japonês, o seguinte "isto é como se fosse uma coisa escrita por um escritor japonês sobre a realidade japonesa", porque há uma violência comum a certas figuras e ao mundo todo. Quando escrevi os Novos Contos da Montanha não pensei em retratar só o que lá havia, pintei as criaturas de Trás-os-Montes mas sem paredes à volta.
Ent. - Há professores que nos dizem que o processo de criação literária é lento e moroso; há no entanto, outros que defendem que as grandes obras nascem espontaneamente. Qual é a sua opinião? Ou melhor, poderá dizer-nos o que significa para si o acto de criação literária?
M.T. - Acham que é possível escrever qualquer coisa de grande, de significativo (por exemplo, os Novos Contos da Montanha, traduzidos em várias línguas), como quem faz uma minuta? Acham que um escritor pode ser espontâneo? Hoje em dia quando se fala em espontâneo pretendem referir-se aos indivíduos que saltam para dentro da arena e toureiam o touro sem serem profissionais de toureio. Acham que é possível ser um espontâneo, saltar para dentro da arena literária e fazer uma obra assim de qualquer maneira?!
Quando um escritor escreve uma coisa significativa, fá-lo em conta toda uma legião de escritores que o precederam. Numa literatura como a portuguesa, que tem 700 anos de idade, não acham que essa herança é uma carga muito pesada? Acham que é possível escrever sem saber o que escreveram todos os antepassados da língua? Sem fazer um estudo prévio?
Tenho muitos leitores que me escrevem a dizer que lêem um trecho meu e que, mesmo sem indicação, o identificam como sendo meu. Todo o escritor tem o seu estilo, e isso é uma conquista muito lenta; é muito difícil escrever. O Dr. Hernâni Cidade de quem fui amigo, disse-me um dia que eu era o único escritor que escrevia a tirar as palavras do texto, não a pô-las. Para a maioria dos escritores todas as palavras que vêm ao bico da pena servem para a obra, mas nos meus textos há uma economia total de palavras. Sou um homem sintético, pois se puder dizer qualquer coisa em duas palavras não digo em três; caso contrário estaria apenas a escrevinhar.
Ent. - A sua carreira com escritor é paralela ou, pelo contrário, intercepta a sua carreira como médico?
M.T. - Não existe qualquer relação. São pessoas distintas, como expliquei no princípio, embora tudo tenha a ver com a minha actividade de escritor: não só a minha experiência médica, mas também a experiência amorosa, social, política, etc.
Como escritor tenho que atender a tudo o que me rodeia, na minha escrita está a medicina, a botânica… se faço um poema a um negrilho, uma planta, alguma coisa tenho que saber em relação à botânica. É natural que o facto de ser médico tenha importância não como médico mas na medida em que o exercício da medicina, o contacto com as desgraças humanas, tenha implicações na minha escrita. O escritor não está dentro de uma caixa fechada; tudo o que me rodeia tem grande importância na minha vida. Por exemplo, o relógio que se vê no meu consultório, por cima do Banco de Portugal, é muito importante para mim porque marcou diariamente o tempo da minha vida.
Ent. - É tido com um escritor de rara sensibilidade, sendo um grande vulto da nossa literatura, fortemente admirado pelos leitores. Quer comentar?
M.T. - As meninas é que sabem, eu não vou responder. Nunca tive com os meus leitores outra relação que não aquela que começa e acaba nas montras da livraria; nunca fiz uma promoção, um lançamento, nunca fiz dedicatórias… Vem aqui gente com livros para eu assinar e eu digo que não. Uma vez no Gerês vieram-me pedir autógrafos argumentando que um outro escritor que lá estava se encontrava a dar autógrafos. Mandei-os ter com ele…
Ent. - No 8.º ano de escolaridade é frequente ter como objecto de análise o conto "Fronteira". Se fosse professor e tivesse que seleccionar um, qual escolheria?
M.T. - Conforme. Tenho um grande respeito pelos professores mas julgo que, infelizmente, o ensino vai por mau caminho. As universidades e os liceus preparam mal as pessoas, mas eu sou devedor, um grande devedor, do meu professor primário. O Sr. Botelho. O Sr. Botelho foi um grande homem, fez tudo para eu não ficasse na minha terra a cavar. E para não ficar lá fiz coisas do arco-da-velha, talvez devesse ter ficado porque não estaria tão doente e tão amargurado com estou… Fui para o Porto servir, estive num seminário, fui aos treze anos para o Brasil trabalhar numa roça; capinei café, fui cowboy de vacas e toiros e, inclusivamente, fui caçador de cobras…
Tudo porque o Sr. Botelho não me deixou ficar na minha terra! Mas o Sr. Botelho meteu-me no sangue o vírus da cultura e eu ainda hoje sei muitas coisas que o Sr. Botelho me ensinou e que me são muito úteis; por exemplo o nome das serras e rios de Portugal. Fui um grande viajante, conheço muito bem Portugal, de cima para baixo… Escrevi mesmo um livro chamado Portugal, uma síntese geográfica, demográfica, cultural, uma coisa complicada. Enfim, o Sr. Botelho meteu-me o bichinho da cultura, ensinou-me a situar-me na vida e culturalmente. Era uma coisa que os professores de agora deviam ensinar e não ensinam.
Isto tudo para responder à pergunta se escolheria "Fronteira" para dar uma lição… Era conforme a lição que quisesse dar. Se quisesse dar a lição sobre o absurdo radical que há nas fronteiras… Escrevi n' A Criação do Mundo que a minha pátria cívica acaba em Barca d'Alva e a minha pátria telúrica acaba nos Pirinéus. Radicalmente, do ponto de vista da noção de Pátria, do ponto de vista cívico, temos uma fronteira e a nossa realidade social e colectiva acaba ali. Mas quando nos despimos dos conceitos sociológicos e entramos no mundo do Homem radical, a fronteira é tão absurda como seria para um bicho se este tivesse consciência. Para estes não há fronteiras. Perceberam?
Se quisesse dizer tudo isto a um aluno, se lhe quisesse mostrar que o grande drama da humanidade tem sido criar e desfazer fronteiras… porque quando se formam os impérios destroem-se as fronteiras…o império romano não tinha fronteiras, depois desfez-se e formaram-se as chamadas nações latinas com as suas fronteiras. De vez em quando há quem tente desfazer as fronteiras, vejam o caso das duas Alemanhas: primeiro fez-se a fronteira, construiu-se o muro; depois destruiu-se o muro e acabou-se a fronteira. A CEE é uma tentativa de acabar com as fronteiras… E o fenómeno até se dá a nível linguístico, tentando universalizar a expressão… Se quisesse falar de tudo isto, escolhia "Fronteira". Aqui a fronteira é um absurdo representado pela lei, personificado no guarda. Só que uma coisa superior à lei – a vida. Nunca ouviram dizer que a fome não tem lei? Um indivíduo com fome rouba, evidentemente. Mas há outra coisa mais importante que a lei, não é só a vida, é o amor. E o Robalo não resiste àquela rapariga; ele ainda quer lutar, mas quando ela tem um filho dele, o que há-de fazer? Destroem a fronteira, a lei, chegam ao universal. Se quisesse dizer outras coisas, evidentemente, daria outro conto. Se quisesse dizer que o poder humano é enorme, falaria de Garrinchas que tem um tal poder dentro de si que acaba por dar aos próprios deuses um calor que eles não têm e de estão necessitados. É ele que dá um Natal ao divino e não o divino que dá um Natal ao humano. Escolheria conforme o espírito que quisesse avivar nos alunos. Uma coisa é um conto sem significação, outra é a carga que ele comporta. Ainda hoje fazemos leitura de "Os Lusíadas" porque cada leitor encontra uma nova lição no texto, se o texto for rico. E o texto é tanto mais rico quanto mais interpretação comportar. Para finalizar, gostaria de pedir aos professores que fizessem um esforço para que o significado dos contos não fique sempre, sempre na superficialidade.”
In, JL, Jornal de Letras, Artes e Ideias, 1 de Fevereiro de 1995
Paco Bandeira é um músico e compositor português, natural do Alentejo.
Aquando do seu nascimento (e até mesmo, anos mais tarde), o Alentejo, que fazia fronteira com Espanha, era um dos locais onde o contrabando era o ofício da vida.
Como tal, Paco Bandeira refere a sua querida terra natal, tal como Miguel Torga refere Trás-os-Montes com carinho.
Utiliza também a metáfora do contrabando de sentimentos como recordação da sua cidade.
Esta é a letra da música:
A minha cidade (ó Elvas)
Eu nasci no Alentejo
À beira do Guadiana
Sinto orgulho quando vejo
A paisagem Alentejana!
Ó Elvas, ó Elvas
Badajoz à vista.
Sou contrabandista
De amor e saudade
Transporto no peito
A minha cidade.
Uma moça da cidade
Chamou-me de provinciano
Eu tenho grande vaidade
De ter nascido alentejano!
Ó Elvas, ó Elvas
Badajoz à vista.
Sou contrabandista
De amor e saudade
Transporto no peito
A minha cidade.
Porque a sabedoria popular nos ensina muitos valores e morais que a escola não consegue alcançar, seleccionei alguns provérbios populares portugueses que estivessem relacionados com o conto “Fronteira”. Assim sendo, a maioria tem como tema o “amor”, mas também o “ser-humano”: